São comuns as histórias de sucesso em tratamentos à base de canabidiol e THC. Dificilmente alguém que acessa as redes sociais e lê jornais não vai ter esbarrado ainda num caso comovente: crianças que sofriam dezenas de convulsões e passaram a ter uma vida melhor; adultos com depressão que não cedia diante de outros medicamentos; pacientes de diversas doenças que estão fazendo tratamentos experimentais.
A Medicina está cada vez mais avançada nas descobertas de usos de derivados da cannabis, e os laboratórios têm, desenvolvido soluções que estão disponíveis no mercado. O Direito, porém, demora a se adequar à realidade quando ocorrem essas pequenas revoluções, e no Brasil a chegada dos medicamentos à base de maconha vem sendo marcada por polêmicas no mundo Legislativo. Apesar disso, parece certo que em pouco tempo vai aumentar (e muito) o número de casos em que pacientes recebem o direito de acessar o canabidiol e o THC, e também a quantidade de pessoas autorizadas a plantar pés de cannabis para produção do próprio remédio.
O acesso aos medicamentos hoje nem tem precisado passar pelos tribunais. A própria Anvisa já regulamentou o assunto, explica a advogada Melissa Kanda, presidente da comissão de direito à saúde da OAB-PR e especialista em direito da medicina pela Universidade de Coimbra em Portugal. “Como a Anvisa, considerando a medicina baseada em evidências, eficácia e segurança, já ampliou a regulamentação que permite a produção de produtos medicinais de canabidiol no país, ainda que mediante importação dos insumos, a possibilidade de acesso à população já foi ampliada”, diz ela.
Quem pode pagar?
O gargalo agora é outro. A discussão tem a ver com o preço dos produtos, e a única solução viável para que houvesse maior acesso seria uma lei aprovando o plantio de cannabis em solo brasileiro. “O próximo passo”, diz Melissa Kanda, “seria permitir o plantio da matéria prima em solo nacional para produção dos produtos medicinais. Isso, porém, envolve questões de segurança e agricultura, portanto, um tema mais complexo “que deve pesar na decisão final”, afirma ela.
Um caso que demonstra a necessidade de barateamento dos produtos é o da menina Pérola, uma garota paranaense que nasceu com uma síndrome rara que dificulta seu desenvolvimento neurológico. Em depoimento à revista Piauí, a mãe de Pétala explicou que o canabidiol foi o que mais ajudou sua filha. No entanto, o frasco para dois meses de tratamento custa 200 dólares, e mais R$ 400 de frete internacional. Quem pode pagar isso?
A história da menina foi um dos motivos que levou o deputado estadual Goura (PDT) a apresentar uma lei para que os produtos medicinais à base de cannabis sejam disponibilizados gratuitamente na rede pública de saúde – não por acaso, a lei resultante do esforço ganhou o nome de “Lei Pétala”. Mas para se ter uma ideia do tabu envolvendo a cannabis: embora os remédios proporcionem uma imensa melhoria na qualidade de vida dos pacientes, o governador Ratinho JR (PSD), se negou a sancionar a lei aprovada – que precisou ser promulgada pela própria Assembleia.
“Ainda que, atualmente, haja maior disponibilidade dos produtos medicinais de canabidiol e a facilitação da importação, pela Anvisa, muitos pacientes não têm condições financeiras de arcar com os custos elevados e precisam demandar judicialmente em face do Estado, Município ou União para receber o tratamento gratuitamente. Portanto, a oferta do tratamento por meio da rede pública é muito bem-vinda, mas depende de disponibilidade orçamentária no âmbito do Estado do Paraná e do registro, na Anvisa, dos produtos a serem fornecidos”, diz Melissa Kanda.
Plantio e conservadorismo
Colocar os canabinoides no SUS, no entanto, não resolve o problema – o alto custo da importação passa a ser assumido pelo Estado, o que resolve a situação das famílias mas pressiona os custos do sistema. No fundo, todos sabem que a saída de longo prazo é o plantio em terras nacionais. Mas aí o conservadorismo do Congresso Nacional entra em cena.
Um projeto permitindo o plantio controlado – com diversas restrições e fiscalização do Estado – foi aprovado depois de muito tumulto em uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados. (O deputado paranaense Diego Garcia chegou a agredir o presidente da Comissão por medo de que a proposta fosse aprovada, e no final o projeto só passou com o voto de minerva do relator, o também paranaense Luciano Ducci.)
No entanto, mesmo aprovado, o projeto patina na Câmara. No caso, deputados conservadores dizem temer o avanço das drogas no país a partir do “pretexto” do uso medicinal da cannabis. A bancada religiosa apresentou um pedido para que a proposta seja votada em plenário, um artifício usado quando os parlamentares não gostam do resultado da comissão. E o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), está desde o ano passado sem definir quando vota esse pedido.
“Muitas discussões atuais são pautadas em crenças e sentimentos próprios e distanciam as políticas sociais, em especial as políticas criminais, do espaço da racionalidade”, diz a advogada criminalista e professora universitária Juliana Bertholdi, em entrevista ao Plural. “Entende-se a partir de um senso comum que efeitos deletérios podem advir de determinada decisão e não se busca certificar ou assegurar tais efeitos. Refuta-se por completo um processo decisório racional. Decisões políticas deveriam ser tomadas com base em fatos, estudos, pesquisas, buscando o bem-estar social”, afirma ela.
“Possibilitar a produção local de medicamentos cientificamente eficazes e socialmente necessários, com um preço de venda que possibilite a aquisição por aqueles que necessitam e desonerando o Estado Brasileiro é uma decisão racional e eu arriscaria dizer bastante alinhada com uma visão economicamente liberal – tanto que adotada nos Estados Unidos e boa parte da Europa. Optar por outro caminho é contrário aos interesses sociais e de todo irracional”, completa Juliana.
Ações individuais
Advogados procurados pelo Plural dizem que hoje muitos juízos de primeira instância já têm se sensibilizado com a questão e autorizado o plantio em quantidades minúsculas para pacientes individuais cuja necessidade esteja comprovada. Mas nem sempre as coisas são fáceis, muito menos existe garantia de vitória no Judiciário.
“Há muita insegurança jurídica”, diz Diogo Busse, advogado acostumado a entrar com ações do gênero e integrante do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas. “A falta de uma discussão séria no Congresso Nacional, acerca de um modelo regulatório inteligente, e a omissão do governo passado em elaborar caminhos no Poder Executivo para ampliar o acesso, geram grandes e graves problemas.”
De acordo com Diogo, ainda não há ainda “um entendimento pacificado por parte dos juízes, apesar de o STJ já ter firmado posicionamento recentemente permitindo o autocultivo de maconha para fins de produção de medicamento.”