“Vidas rebeldes, belos experimentos” é um livro provocador e necessário

Autora usa "fábula crítica" para contextualizar o pós-abolição nos cinturões negros da Filadélfia e de Nova York no livro "Vidas rebeldes, belos experimentos"

Saidiya Hartman é professora na Universidade Columbia, em Nova York, e dona de um método próprio de escrita, chamado de “fábula crítica”. Em suma, é a combinação de pesquisas histórias com experiências de vida e fantasia. Técnica empregada em “Vidas rebeldes, belos experimentos“.

O livro nos conduz aos cinturões negros dos guetos da Filadélfia e Nova York, logo no pós-abolição. Uma imersão pela história afro-americana na qual Hartman inverte a lógica: não parte mais dos pesquisadores ou acadêmicos a definição do comportamento dos negros, mas eles mesmos protagonizam as narrativas do livro.

Apesar de usar a fabulação crítica, todas as personagens e os eventos apresentados no livro são reais. “Nada foi inventado”, pontua a autora em uma nota sobre o método.

Das mulheres

Hartman se debruça sobretudo nas experiências de mulheres, entre as importantes décadas de 1890 e 1935.

Para levantar todas as informações, a autora usou o acervo de arquivos da Biblioteca Pública de Nova York. Lá, ela encontra um cartão de apreensão em nome de uma adolescente de 14 anos, Eleanora Fagan, detida por prostituição. Eleanora, na verdade, é Billie Holiday.

No entanto, ao mesmo tempo que traz personagens conhecidas na luta pelos direitos civis da população afro-americana, Saidiya Hartman também se depara com figuras anônimas, não menos importantes.

Uma menina

Uma das primeiras personagens reveladas pela autora é uma menina, uma criança, cuja foto ela encontrou durante as pesquisas nos arquivos. Hartman escreve: “A odalisca, uma imagem de nu reclinado, combina duas categorias distinta da mercadoria: a escrava e a prostituta. A rigidez do corpo trai a lasciva postura reclinada, e o olhar vazio e duro da menina dificilmente é um convite à admiração. Ela recua o máximo possível da câmera no canto do sofá, como se à procura de um lugar para se esconder. Seu olhar direto para a câmera não é um convite ao espectador, um apelo por reconhecimento ou um olhar baseado na reciprocidade”.

Diferente do que ocorre ao longo do livro, com fotos que demonstram personagens, mesmo que anônimas, essa imagem especifica é publicada em uma página dupla, com o texto sobreposto, buscando dar algum respeito àquela criança negra que representa tantas outras.

Emancipação

A primeira lei de emancipação gradual da escravidão foi aprovada em 1780, mas a questão avançava e retrocedia. Em 1838 os cidadãos negros perderam o direito ao voto depois que as qualificações para o sufrágio mudaram de “todo homem livre” para “todo homem branco livre” pode votar. Essa movimentação impacta na vida da população afro-americana.

O livro é ambientado três décadas após a emancipação, durante o experimento da liberdade para seres humanos negros, e traz todos os conflitos que essa ação levanta numa sociedade racista.

Vidas rebeldes, belos experimentos fere, sobretudo, porque lida com o cotidiano. Roupas penduradas no varal, relacionamentos amorosos, trabalho exaustivo. A vida comum de uma pessoa negra nos Estados Unidos no pós-abolição se diferencia da vida de uma pessoa negra hoje? É diferente do Brasil?

Aqui, no Brasil

Questionamentos como estes são provocados o tempo todo. Estimo, no entanto, que leitores brancos podem não ter a mesma percepção, sobretudo porque algumas das experiências vividas pelas personagens e narradas por Hartman são comuns para pessoas negras também aqui no Brasil.

Estou sendo seguida na loja? Há empregos para negros aqui? Por que mulheres negras são raivosas?

“Vidas rebeldes…” é um livro dolorido, importante, pulsante, provocador e quente como o verão no Harlem.

“Vidas rebeldes, belos experimentos”

“Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais”, de Saidiya Hartman. Tradução de Floresta. Fósforo, 432 páginas, R$ 89,90 e R$ 62,90 (e-book). Não ficção.

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