“Quem disse que somos uma democracia, ainda mais consolidada?”

Benett fala sobre como uma manobra jurídica feita para intimidar cartunistas da “Folha” é, na prática, outra ameaça lançada contra o estado democrático

Dê uma boa olhada na charge que ilustra esta página. Ela saiu na “Folha de S.Paulo”, em 12 de dezembro do ano passado, dias depois de uma operação da Polícia Militar na favela de Paraisópolis terminar com nove civis mortos.

No desenho feito pelo cartunista Alberto Benett, existem apenas dois elementos coloridos: o sangue e a pele do corpo coberto com uma página de jornal.

Ao lado do cadáver, uma personagem olha para o impresso que serve de lençol e diz, soando indignada: “Que horror essa charge!”.

A crítica ali é clara: pessoas negras morrem vítimas da violência policial (há sangue no cassetete de um dos policiais, à esquerda do quadro), mas o que causa horror é a charge e não o fato na origem dela.

Por causa desse trabalho, Benett está sendo interpelado na Justiça por uma associação chamada Defenda PM, de São Paulo. E não é só ele. Além do próprio Grupo Folha, outros três cartunistas do jornal paulistano (Laerte, João Montanaro e Claudio Mor) também devem responder por charges feitas com o mesmo tema.

A entidade, cujo nome completo é Associação de Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar, questiona os cartunistas a fim de saber se eles tiveram a intenção de desqualificar os profissionais da PM.

A interpelação foi noticiada pela “Folha” no último fim de semana, em reportagem da jornalista Fernanda Mena. No texto, ela explica que “o pedido de esclarecimento criminal é uma espécie de prelúdio de uma ação penal e, como tal, é indissociável de contornos intimidatórios”.

Na entrevista a seguir, Benett (que é também um dos fundadores do Plural) fala sobre a reação da PM e as consequências que uma manobra jurídica como essa pode ter no atual contexto político.

Essa não é a primeira vez que tentam intimidar você e outros cartunistas da “Folha”. Mas essa interpelação da Defenda PM é diferente de alguma forma?

Esse caso é mais sombrio pelo momento em que vivemos e por quem fez essa interpelação [o presidente da Defenda PM é o coronel Elias Miler da Silva, assessor parlamentar do senador Major Olímpio, do PSL de São Paulo]. Há uma atmosfera de ameaças no ar. O tempo todo tem general advertindo, sugerindo, dando sinais de que algo está por vir. Não é uma questão de “se”, mas sim de “quando”, diz um dos filhos do presidente. Então todo esse ambiente de sugestões e ameaças deixam mais incertezas do que certezas no ar. 

Você sabe dizer se uma ação penal é inevitável nesse caso da PM contra vocês? Ou a história pode começar e acabar na interpelação?

Pode acabar na interpelação, mas sempre fica um recado. Sempre fica um alerta. Eles sabem que estão errados, que não tem como isso ir para a frente em uma Justiça imparcial. Dizem que se sentiram constrangidos pelas charges. Eu me sinto constrangido de ter que explicar uma charge que diz: “Olha, vocês ficaram horrorizados com um desenho, mas não com as mortes. Não sejam ridículos”.

O que mais te preocupa nessa história?

O mais preocupante são esses recados. A sociedade tem que ouvir o tempo todo os militares virem a público ameaçar a democracia, como um velho ralhando com os netos bagunceiros: “Oooolha que eu pego a cinta”. Uma democracia consolidada não comporta esse tipo de atitude. Mas, claro, quem disse que somos uma democracia, ainda mais consolidada?

Você chegou a conversar com a Laerte e os outros cartunistas? Como eles estão encarando a situação?

Sim. Estamos todos em alerta. Ficamos preocupados. Mas não vamos esmorecer, porque sabemos que é isso o que pessoas totalitárias querem. O silêncio de seus críticos. Se não houver uma reação da sociedade, esse tipo de atitude vai avançando cada vez mais, um passo por vez. E, quando todo mundo acordar, pode ser tarde demais.

Você acha que corremos um risco grande de viver esse hipotético “tarde demais”?

Como diria Zeca Pagodinho, camarão que dorme a onda leva. Se a sociedade civil não se levantar contra essas ameaças, é melhor já escolher um lugarzinho mais confortável na Ponta da Pedra.

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