Primeira direção de Beto Bruel tem texto de Karam e estreia no Festival de Curitiba

A peça inédita "Ovos não têm janela" celebra os 50 anos do "Teatro Margem" com encontros especiais no palco e o mais novo desafio de Bruel na arte

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Muitos dos bons espetáculos do Paraná e do Brasil têm uma coisa em comum, algo como uma atmosfera, uma luz particular. Pois bem, essa luz vem do talento de alguém que brilha mesmo estando fora da cena. Estamos falando de Beto Bruel, sem dúvida, o iluminador mais célebre que circula nos bastidores por aqui. Ele soma mais de 51 anos dedicados ao teatro, são mais de dois terços da vida de quem hoje tem 73 anos de idade, e uma infinidade de prêmios (não é exagero, ganhou 23 vezes o Troféu Gralha Azul, tem 5 Prêmios Shell, e também uma medalha de ouro no World Stage Design, em Seul, na Coreia do Sul). 

O que poderia ainda faltar para quem faz a criação da luz cênica parecer algo tão natural quanto respirar ou andar? Um novo desafio. Eis que surge a oportunidade de estrear como diretor em “Ovos não têm janela”, último texto teatral escrito por Manoel Carlos Karam (1947-2007), inédito nos palcos. A mudança não é simples, mas nem por isso surgem sombras nos olhos de Bruel. Para ele, “montar uma peça é uma grande lição de democracia”. 

A montagem tem tudo para ser um sucesso, até porque a peça que chega à mostra Lúcia Camargo do Festival de Curitiba tem histórias que vêm lá do “Teatro Margem”, nos anos 70, passando pelos encontros que a vida e a arte promovem. 

Faltava um convite 

Ao Plural, o ‘compadre’ (explicando aos novinhos, é assim que Bruel chama seus ‘brothers’) disse concordar que é intrigante, em uma carreira tão longa, nunca ter tentado dirigir uma peça. O surpreendente é que esse foi o primeiro convite.

Guenia Lemos, atriz, cenógrafa e também uma das responsáveis pelo projeto, fala que a vontade de montar o texto é antiga, nasceu em conversas entre os artistas Gabriel Gorosito e Moa Leal, que montaram “Duas Criaturas Gritando no Palco”, também de autoria de Karam, em 2014. “Ovos não têm janela” seria dirigida por Leal, mas Gorosito sugeriu uma mudança. A nova ideia era convidar alguém que carrega em si muito do “Teatro Margem” e que teve uma relação próxima com Karam, fundador desse grupo importantíssimo para história do teatro no Paraná. O convite era direcionado para a única pessoa capaz de fazer Leal abrir mão da direção para entrar no elenco: Beto Bruel. “Confesso que eu achava que o Beto não ia topar, mas topou”, conta ela.  

Encontros

Levar essa peça ao palco passa por uma série de encontros. E o primeiro, é claro, coloca Bruel para trabalhar novamente com Karam – diretor, dramaturgo e escritor consagrado. Eles se conheceram nos anos 70, durante as investidas experimentais encenadas pelo grupo “Margem” no Teatro de Bolso. Ali o cruzamento de muitos caminhos mudou (para melhor) o enredo das artes cênicas de Curitiba. 

É evidente a reverência genuína ao amigo falecido, Bruel conta que aprendeu muito com ele. “O respeito que ensinava pelo palco era uma coisa impressionante, eu devo muito ao Karam pela minha maneira de olhar uma obra de teatro”. Na verdade, toda uma trupe de talentos foi influenciada (ou formada) pelo autor de “Ovos não têm janela”, nomes como Alberto Centurião, Ione Prado, Denise Assunção, Dante Mendonça, Solda. 

Estreia de Beto Bruel na direção durante o Festival de Curitiba
Certificado de censura para “Por falar nisso”, peça de Luiz Antônio Solda para o grupo “Teatro Margem”. (Arquivo pessoal)

Quando o assunto vira o reencontro com Luiz Antonio Solda, outros cartunistas entram em cena, Douglas Mayer, Rettamozo, Rogério Dias, Dante. O traço de alguns chegava a outras coisas no “Teatro Margem”, como na assinatura de textos e direções. É o caso do Solda. “Na época, nós fizemos um musical. É engraçado, ninguém sabe, mas ele toca contrabaixo”, diz ao explicar que o cartunista está empolgado fazendo ilustrações para o espetáculo (ou como nos contou o próprio Solda, “Karamkaturas”). Segundo o diretor de agora, a aproximação é importante para ter na equipe “mais alguém que com “aquele olhar”.

A arte entrou na família

O teatro, sem dúvida, vai além do ofício nas relações de Bruel. Maíra Lour embarcou no desafio do tio e está na assistência da direção (sim, ela é sobrinha dele). Ainda foi preciso fazer uma substituição no elenco. Guenia explica que Tatiana Blum interpretaria uma das personagens, mas o papel terminou nas mãos de ninguém menos que Renata Bruel. “Eu sugeri. De repente, é a única peça que eu vou dirigir na vida, então vou ter o prazer de dirigir a minha filha”, diz o pai orgulhoso.

Voltando ao Karam, ou melhor, ao ‘compadre’ de verdade (Bruel lembrou que o autor também foi seu padrinho de casamento), tem o pai e o filho. Bruno Karam, está na sonoplastia do espetáculo e a aposta é num daqueles reencontros que só a arte consegue fazer. Bruel encontrou uma gravação, com músicas que Karam, o pai, fez para a peça “O Cavalo Branco de Napoleão”, mandou digitalizar e passou ao filho, o Bruno. Ou seja, há chances de “Ovos” ter trilha sonora assinada por duas gerações de ‘Karans”. Certeza disso, só na estreia.

O texto

Para Bruel, o texto inédito de Karan é difícil, mas envolvente: “Vai falando de um assunto, vai entrando em outro, e vai, e aquilo vira um colar.” Guenia concorda dizendo que a geometria de um caracol simboliza a dramaturgia. “É um texto maravilhosamente absurdo, é isso que me atrai tanto”, diz ela. 

Essa linguagem, um tanto absurda e outro tanto experimental, é que fala para o público de hoje. Na visão do diretor, a atualidade da obra tem a ver com mandar mensagens e áudios no WhatsApp, ou cruzar com alguém falando ao celular. Com o devido distanciamento, dá quase para ver um quê de loucura nesses diálogos despedaçados, mas existe uma diferença no palco: “É um texto de frases jogadas, que se transformam numa grande ideia”. Por isso mesmo, não há espaço para o improviso, “é proibido”. Ainda sobre os aspectos contemporâneos da dramaturgia, Guenia revela que os personagens em cena estão esperando um doutor a vida inteira, como num limbo. “É um assunto muito atual, eu tenho visto muitas obras que falam sobre estar preso em algum lugar e não conseguir achar a saída”, diz a atriz. 

No meio de tudo isso, Bruel destaca uma homenagem que está no texto, uma piscadinha talvez não tão discreta do Karam para o Samuel Beckett (1906-1989). Mas, agora, isso tomou conta do palco. Guenia conta que começou pensando em muitos arquivos, para deixar indefinido o lugar onde a ação acontece (na verdade, onde a espera acontece), poderia ser a sala de um médico ou advogado. Foi transformando a ideia junto com Beto e nasceu algo orgânico, como um tronco gigantesco de onde muitas coisas podem aparecer. “A gente tem falado muito dessa conexão com ‘Esperando Godot'”, afirma ela – no papel de cenógrafa.

Democracia e arte

Estreia de Beto Bruel na direção durante o Festival de Curitiba
Ilustração “KaramKatura” de Solda para o espetáculo. (Divulgação)

Questionados sobre porque o público deve assistir, as respostas são as comuns entre os que gostam da arte, “faz bem ir ao teatro…”. Mas Guenia deixa seu lado tiete aparecer, “é a imperdível estreia de Beto Bruel na direção”. Ele engata e, com humildade, argumenta que “é uma coisa aqui, de Curitiba. É uma pena que o Karam foi embora tão cedo, imagino que ele estaria produzindo hoje. E, com certeza, vamos fazer uma coisa diferente, honesta, criativa”.  E aproveita para complementar com uma bela imagem do que é montar um espetáculo. “Antigamente tinha os diretores ditadores; é muito bocó o cara achar que pode sair gritando, com uma cadeira e um chicote. Essa maneira [de fazer teatro] hoje, essa lição de democracia que é montar uma peça de teatro, é algo muito bom”, diz Bruel com uma generosidade rara de se encontrar nos talentos consagrados.

E a luz? 

A generosidade de Bruel ainda traz para a conversa outros “compadres” de trabalho. Explica que o figurino, de Gui Almeida, é fundamental para as personagens “meio esquisitas” subirem ao palco; e, com muito bom humor, fala que a missão de fazer a luz está com Lucas Amado. A passagem do bastão, ou melhor, dos refletores, se deu por essa fé na democracia da arte. “Seria ruim se eu fizesse a luz também, e tenho trabalhado com o Lucas em outras coisas, então vai ser bom”, diz. 

Dá para ver que é verdade, afinal não faltaram risos durante esse papo (neste ponto, foram gargalhadas). É que Bruel confessou que está tentando não interferir demais na criação da luz, algo quase impossível. “Nos ensaios, eu penso ‘não vou falar da luz, não vou falar da luz…’ Aí sai ‘Gorosito, você está lá no fundo, com um corredor de luz’. Eu já comecei a brincar até”.

Novas temporadas

Sobre aquele comentário desta terminar como a única peça dirigida por Bruel, ele reforça que está diante de seu maior desafio na arte, deixa claro que a direção pede que se traga mais ‘à luz’. Como exemplo, fala do tempo envolvido nos ensaios, pois poderia criar a iluminação de até cinco espetáculos nesses cerca de 40 dias. Para ele – e só para ele – fazer a luz é muito mais fácil, “quando você chega lá, o diretor já perdeu todos os cabelos.” E segue sorrindo enquanto comenta que recusou convites de Guilherme Weber e Nena Inoue, entre outros, para poder estar à frente de “Ovos não têm janelas”. 

Para finalizar, revela a sua admiração por nomes como Zé Celso, Antunes Filho, Felipe Hirsch, Marcio Abreu e Gabriel Villela. “A cada década eles mudam a maneira de ser, mudam a estética do fazer teatro no país”, diz Bruel acentuando o peso da responsabilidade. Diante da pergunta explícita “Mas para por aqui?”, a humildade volta à cena: “Bom, vamos ver o que vai acontecer.” 

“Ovos não têm janela”

Texto de Manoel Carlos Karam, com direção de Beto Bruel. Elenco: Gabriel Gorosito, Guenia Lemos, Moa Leal, Renata Bruel e Sidy Correa. Sessões na quarta-feira (05/04) e quinta-feira (06/04), no Auditório Poty Lazzarotto do Museu Oscar Niemeyer (MON). Para outras informações, clique aqui. Programação e ingressos no site do Festival de Curitiba.

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