Peça “Os analfabetos” encara a plateia com um sorriso sarcástico

Ao criticar o nosso tempo, sem cair no riso fácil ou no dramalhão, o espetáculo traz a realidade para um teatro não realista

A peça “Os analfabetos” tem sessões extras até este domingo (15), na Carpintaria do Teatro Guaíra. Quem não puder assistir deve ter uma nova chance em breve, pois o projeto está entre os melhores classificados no edital da Retomada Cultural, da Lei Paulo Gustavo (LPG) em Curitiba. E por que falar disso? Porque vale a pena, é um dos melhores espetáculos montados na cidade neste ano. 

Na verdade, o texto de Paula Goja estreou no Rio de Janeiro em 2019, com direção de Adriano Petermann e Stella Maris entre as atrizes no elenco. Essa dupla continua na equipe da nova versão, estrelada por Guta Stresser ao lado de um time e tanto.

Inteligente

A montagem é simples sem ser simplória. Não precisa de muito para acontecer, mas pediu inteligência e os talentos certos para chegar ao palco. Uma pista do que é o espetáculo está na trilha sonora, tudo começa com a banda pós-punk Bauhaus, quando vai se criando um clima com a faixa “Bela Lugosi’s Dead” e depois cai a ficha: dava para ouvir uma ironia fina ali. Ainda tem “Green Grass” de Tom Waits, embalando a verve tétrica da luz (genial) assinada por Nanda Mantovani e Wagner Corrêa, e operada quase o tempo todo pelos próprios atores, combinando direitinho com o figurino e a maquiagem assinados por Aldice Lopes.

É claro que não adianta procurar final feliz em “Os analfabetos”, as cenas são como aquelas porradas que você toma quando menos espera e vindas de onde você nem imagina. A história apresenta seis pessoas e suas dificuldades em entender e respeitar as emoções dos outros, e até as próprias, escancara vaidades e frustrações. Deco (Elisan Correia) é um ator que acabou de conseguir o seu primeiro papel na televisão e organiza um jantar com os amigos para comemorar a conquista. O encontro é na casa de Mariana (Guta Stresser), uma atriz que não fala desde que entrou em uma espécie de estado catatônico enquanto encenava uma peça, e que vive sob os cuidados da enfermeira Beth (Stella Maris). Ainda está ali Max (Gabriel Gorosito), irmão de Mariana que trabalha como dramaturgo, e sua futura ex-esposa Eva (Guenia Lemos). Completa o sexteto o cineasta Luciano (papel de Anderson Fregolente).

Sem riso fácil nem dramalhão

É um espetáculo que fala para o nosso tempo. Apesar do texto ser classificado por Paula Goja como um drama psicológico, a montagem não cai no dramalhão e escapa de fórmulas manjadas de comédia. A visão de Petermann permite momentos de riso, seja pelo deboche, pelo absurdo ou pelo desconforto ao entendermos que viramos uma piada sarcástica. 

No palco, a arte fala de seu próprio mundo para também falar de todos nós. Ainda existe um jogo com o público, estabelecido a partir da conversa com outras obras, porém dá para encontrar sentido na peça mesmo sem essas referências, o que se perde é um pouco da ironia. Como não conheço o texto original, não dá para saber ao certo, mas suspeito que esse jogo foi ampliado em Curitiba. 

Não realista e real

Os trabalhos de Bergman e Nelson Rodrigues são a inspiração declarada da autora para “Os Analfabetos”. Contudo, a direção da nova montagem coloca um sorriso sarcástico no rosto e traz a realidade para dentro desse teatro nada realista. É que a personagem Mariana encenava o espetáculo “Vestido de Noiva” quando parou de se comunicar com o mundo, além do figurino as falas confirmam isso; já Guta estava no elenco dessa mesma peça, de Nelson Rodrigues, no Festival de Teatro de Curitiba em 1997, no papel da protagonista Glorinha. Foi então que ela, a atriz do mundo real, teve a oportunidade de entrar no elenco do programa de TV “A grande família”, na Globo. 

Ainda recentemente veio à público a situação que a artista enfrenta hoje, com a redução de convites para trabalho desde o diagnóstico de esclerose múltipla e dificuldades financeiras após a saída da emissora. É impossível não lembrar disso ao ver Mariana finalmente retomar a fala. 

Leia também: Um Nelson Rodrigues para encerrar o Festival

O palco é delas

Se a atuação de Guta em “Os analfabetos” marca o início de uma nova fase para a atriz, ela começou com o pé direito e em ótima companhia. Os meninos da trupe estão muito bem, mas as mulheres roubam a cena. Stella traz sua enfermeira da sombra para o centro das atenções sem demonstrar esforço, e faz uma personagem frágil ganhar ares de psicopata com ajuda da maquiagem que lembra algo do Coringa encenado por Heath Ledger no cinema. E Guenia não tem medo de abrir mão de sua vivacidade para trazer ao palco uma Eva com tudo o que o mundo ainda espera e impõe às mulheres: ser uma marionete em seus diferentes papéis sociais. Ela está perfeita.

Carpintaria

Essa primeira temporada em Curitiba foi independente e conseguir agenda nos teatros não anda fácil por aqui. Assim, a Carpintaria do Teatro Guaíra, com sua caixa preta, pode ter parecido o lugar certo para a peça, mas não foi. A acústica ali é ruim e encarar a nossa própria desgraça por quase uma hora já é desconfortável o suficiente.

Espetáculo “Os Analfabetos”

Sessões extras até 15 de outubro (domingo), às 20h, na Carpintaria do Teatro Guaíra, nos fundos do Guairinha (Entrada pela rua Amintas de Barros, 70). Ingressos à venda na bilheteria do teatro ou pelo site Deu Balada, a partir de R$ 25 (meia-entrada). Uma nova temporada deve entrar em cartaz em breve com a aprovação do projeto na LPG.

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1 comentário em “Peça “Os analfabetos” encara a plateia com um sorriso sarcástico”

  1. José Gonçalves - Zegonblack

    Assisti a peça. Sai chocado, realmente espaço pequeno no porão de um teatro para tantos talentos juntos. Mas o grupo da um Up tão brilhante a peça, entre falas suaves e e interpretações impostadas , agressivas, juntando a otima trilha sonora, entre outras “Bauhaus”, que sai entre o assombro e o encantamento… Adorei…

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