“Não tem água, não tem luz, não tem vida”, conta a refugiada de guerra Myria Tokmaji 

Em entrevista, a artista que está no espetáculo de dança "Projeto Origem", fala sobre os desafios vencidos por quem saiu da zona de conflito há 10 anos

Myria Tokmaji chegou em 2013 em Curitiba, vinda de Alepo, cidade ao norte da Síria. Fora o trauma por deixar sua terra natal em meio aos bombardeios e massacres da guerra, ela enfrentou toda sorte de dificuldades para refazer a vida em um novo país. Da chegada solitária ao Brasil até a incompreensão da língua, do luto pela morte de amigos até o temor por familiares ainda na zona de conflito, tudo foi e é um desafio. Porém, poder contar sua história e o relacionamento com a arte mudaram totalmente a sua vida. 

Myria Tokmaji, refugiada de guerra

Hoje ela está com 32 anos e prepara o lançamento de uma marca própria de jóias. Mas não é só isso, Myria está no palco do espetáculo de dança “Projeto Origem”. Ao Plural, a artista conta um pouco do que viu e viveu, de como em uma guerra “não tem água, não tem luz, não tem vida”, e sobre a importância da arte quando se deixa tudo para trás. Confira a entrevista a seguir.

Como foi sair de Alepo?

A caminhada é uma história em si. Minha família decidiu sair, mas não podíamos ir juntos. É preciso arriscar a vida na saída de Alepo, passar pela guerra e chegar ao país vizinho, o Líbano, conseguir o visto e, depois, pensar em viajar.

Deixei minha cidade e cheguei em Curitiba há 10 anos. Meus pais saíram e, como eu era a única que conseguiu o visto, me levaram junto. Saí de Alepo em um avião militar, aquele que não tem assentos e abre atrás. Foi um desafio enorme, passamos por atiradores, por bombas e perigos com risco de vida até estarmos fora da zona de combate.

Como vê a situação da Síria e do conflito na Faixa de Gaza? 

A Síria ainda está infelizmente em estado de guerra. Não se compara como antes [Guerra Cívil Síria, iniciada na Primavera Árabe], especialmente em Alepo, um dos locais mais afetados e de onde posso falar porque tenho contato. O conflito mudou muito a cidade e o meu país, com os bombardeios e tudo que vocês já sabem. A situação sempre é difícil, faltam as necessidades básicas aos civis. Não tem água, não tem luz, não tem vida. 

A situação entre Israel, Faixa de Gaza e Palestina dói muito no meu coração, porque em qualquer guerra quem sofre realmente são as crianças, os civis, as pessoas inocentes que não tem nada a ver com o conflito. Foi o meu caso, eu estava lá no meio da guerra sem entender o que acontecia. Não temos escolha, não podemos ficar na nossa casa, por isso se chama refugiado. Você realmente é obrigado a sair e deixar tudo para trás. Então, muita gente pergunta se eu quero voltar, mas não há como voltar ainda.

Você tem família e amigos que ficaram em sua terra natal?

Claro que ainda tenho parentes e amigos lá. Também perdi bastante amigos e conhecidos, não perdi minha família porque saímos em partes, em etapas, e conseguimos trazer 16 pessoas para cá: meus pais, avós, primos, e tios. A gente conseguiu se livrar da morte e, graças a Deus, estamos aqui, vivos.

Quais foram as maiores dificuldades na adaptação a um novo lar?

Eu cheguei sozinha no Brasil, sem falar uma palavra de português, isso dificultou muito a integração e o recomeço da vida. Você não consegue se comunicar, é como se não existisse. Ninguém fala árabe aqui, a gente escreve direita para esquerda e vocês escrevem da esquerda para direita. É outro universo, parece outro planeta. Muitas vezes a dificuldade está em coisas básicas, como se virar na rua, saber onde você está, qual o nome do ônibus, como é fazer compras no supermercado. Contando parecem coisas ridículas, mas para um migrante, para um refugiado, qualquer coisinha é um obstáculo, é uma dificuldade. 

Então, o primeiro desafio foi o idioma, depois a integração no mercado de trabalho, a adaptação e a saúde mental. Os refugiados chegam com necessidade de apoio psicológico pelos traumas, por todas as cenas horríveis que vimos. Na chegada, achamos que estamos bem e, na verdade, não estamos. Tudo está dentro de nós.

E a gente cai de paraquedas, não tem muita escolha. Existem as regras de autorização, você não pode sair daqui ou perde o visto temporário. Em alguns momentos, eu me sentia até presa num país tão grande como o Brasil, porque existia a limitação de viagens devido ao visto, por causa das complicações e fronteiras.

Qual o papel da arte na sua vida? 

A arte mudou totalmente a minha vida. Na guerra, como eu não tinha acesso à energia [elétrica], aprendi crochê com minha avó, para fazer algo que não precisasse de internet ou luz. Aqui o meu artesanato em crochê, foi o sustento no começo, enquanto eu estava sem emprego no Brasil. 

Eu sou formada em belas artes, comunicação visual e design gráfico, e sempre tive um contato forte com música, dança e arte na Síria. Mas no Brasil, o processo de revalidação [de diplomas] foi bem difícil, demorou três anos, e comecei a trabalhar numa agência de design e conteúdo, com 15 mulheres. Era algo fantástico ver mulheres trabalhando, criando, conquistando espaço no mercado; é uma coisa muito rara no meu país e me deixou muito contente.

Depois, o design e a arte do artesanato me levaram para o mundo do desenho de joias, eu pude ir atrás dos meus sonhos. Estudei em São Paulo e estou criando minha marca própria, se chama Ebla, nome de uma cidade da Síria com uma história milenar, famosa por jóias e ouro.

Aqui em Curitiba, para superar o que vivi, minha terapia foi fazer palestras, compartilhar minha vida, e também participei de vários livros com outros refugiados. Um deles é uma narrativa sobre histórias da nossa infância, e descobrimos que os brinquedos, os jogos e os desejos são muito parecidos com os do povo daqui, muito mais do que a gente imagina.

Você está ao lado de brasileiros e outros migrantes no espetáculo “Projeto Origem”. O quanto isso é importante? 

O legal do espetáculo é o espaço que temos para a expressão particular, para mostrar a diferença e as histórias que também são similares; como foi o refúgio de cada um, como migrou, os movimentos migratórios, essas caminhadas. O incrível é mostrar o que cruzou nossas vidas no palco, para contar nossas histórias no corpo e na alma, em movimentos, em falas e canto. 

Leia também: “Projeto Origem” mostra na dança a força dos migrantes

Na verdade, faço parte de um trio de música, o Alma Síria, com voz e instrumentos milenares, eu toco o qanun, com 80 cordas; meu irmão [Abed Loxca] toca alaúde; e minha cunhada [Lucia Loxca] canta. E, em 2017, a Patrícia Machado [coreógrafa e diretora do “Projeto Origem”] conversou conosco para construir um espetáculo baseado na nossa história de vida com os bailarinos do Guaíra. Foi um processo lindo, foi lindo participar, dançar, tocar e criar. O “Projeto Origem” nasceu ali, mas hoje estamos em uma nova fase com a Patrícia, com o olhar dela, e também a visão da Laura Haddad. Este novo espetáculo tem mais camadas, com outras etnias, refugiados de outros países, de diferentes nacionalidades. 

Por que acha que o público deve assistir ao espetáculo?

Ver essa mistura cultural, que enriquece muito a obra, é imperdível. O convite é para vocês estarem conosco, perto do palco, para que assistam e prestigiem esses povos, essas culturas. O bonito do espetáculo é mostrar o tão diferente de cada um e o tão similar, ao mesmo tempo; afinal, somos muito parecidos em vários aspectos.

Espetáculo de dança “Projeto Origem”

Até 12 de novembro, terças, quartas, quintas e sextas-feiras, às 20h. Sábados e domingos, duas sessões, às 18h e às 20h, no Teatro Zé Maria (Rua Treze de Maio, 655, São Francisco). Ingressos gratuitos, distribuídos a partir de 1h antes de cada espetáculo. Classificação indicativa livre, com duração de 50 min. Outras informações aqui.

Equipe: Criação e direção de Patrícia Machado; dramaturgia de Laura Haddad; colaboração artística de Ane Adade e Maira Lour; dançado e criado em colaboração por Ane Adade (Brasil), Anamile Bolívar (Venezuela), Cassandre Pierre (Haiti), Francisco Rodriguez Tayupo (Venezuela), Guille (Venezuela); Myria Tokmaji (Síria), Nayara Santos (Brasil), Romec (Brasil), Vitor Rosa (Brasil); cenografia de Fernando Marés; iluminação de Anry Aider; figurinos de Eduardo Giacomini; sonoplastia de Sérgio Justen. 

Projeto realizado com recursos do programa de apoio e incentivo à cultura – Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em ““Não tem água, não tem luz, não tem vida”, conta a refugiada de guerra Myria Tokmaji ”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima