Um mundo em que ursinhos de brinquedo vigiam as pessoas

Romance Kentukis fala sobre tecnologia, solidão e perda da privacidade no século 21

Imagine ganhar um ursinho caro e meio feio – em formato de coelho, dragão ou toupeira – com rodinhas e câmeras ao invés de olhos que te segue pela casa; ou o contrário, poder controlar através de um tablet um ursinho, chamado de kentuki, e vigiar alguém. Você não pode escolher o lugar, nem saber quem é a pessoa por trás, de ambos os lados, mas as duas partes sabem que vigiam e são vigiadas.

Essa é a premissa básica de Kentukis, novo romance da argentina Samanta Schweblin (Fósforo). Com dezenas de personagens em diversos de países (até o Brasil faz uma aparição), o tempo todo é possível imaginá-lo sendo adaptado para cinema ou como um episódio de Black Mirror. Não à toa, o livro vai virar série de TV em breve.

Acompanhamos várias narrativas intercaladas, algumas mais longas, com personagens fixos que aparecem e reaparecem, e outras bem curtas, de três ou quatro páginas, que funcionam quase como microcontos isolados, com figuras que fazem apenas uma única aparição.

Há kentuki controlado por uma pessoa solitária em busca de companhia, há kentuki controlado por um possível pedófilo, um outro visto por alguém preso em cativeiro, ou um kentuki que simplesmente quer fazer turismo pela cidade. Aliás, das dezenas de histórias do romance, talvez a mais interessante seja do hacker que vende cladestinamente kentukis com localidades já pré-definidas e todos os seus desdobramentos a partir disso.

Schweblin acerta em cheio ao explorar o uso da tecnologia em nossas vidas e Kentukis, muito possivelmente, constará nas listas de dezembro de melhores livros do ano.

Um adendo deve ser feito em relação à tradução. Talvez a língua mais difícil de traduzir, para nós, brasileiros, seja o castelhano, justamente pela enorme proximidade entre português e espanhol. É bastante fácil, em algum momento, soar como espanhol, cair em armadilhas. Livia Deorsola, vinda da nova safra de excelentes tradutoras de espanhol, como Mariana Sanchez, entrega um texto extremamente fluente.

A edição americana traduziu o título por Olhinhos, e tanto na Holanda quanto Alemanha ficou Mil Olhos, algo bem captado na capa da edição brasileira.

Falando em edição, vale a pena destacar o trabalho da Fósforo, nova casa que já chega mostrando que veio para rivalizar com a Todavia. A edição é bem cuidada, e tanto na capa quanto na contracapa há em auto-relevo pequeninas faíscas, o logo da editora. Ou seriam micro olhinhos nos vigiando?

Serviço

Kentukis, de Samantha Schweblin. Tradução de Livia Deorsola. Fósforo, 192 páginas, R$ 64,90 (papel) ou R$ 49,90 (e-book).

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima