Lá onde gafanhotos escapam de pôsteres e falta um sofá

Natércia Pontes estreia em romance com um retrato de uma família em pedaços pontiagudos

É preciso cuidado: em volta da página em que Abigail, a narradora, inicia a história, há um ralo entupido, uma lata de milho em conserva aberta, com o metal cortante à mostra, e algumas silhuetas de corpos de insetos não recolhidos. E há ainda esse gosto de prece e maresia na boca, que nem se engole, nem se cospe porque o mundo da narradora de Os tais caquinhos, de Natércia Pontes, já passou do prazo de validade para se pedir alguma coisa a deus. A vida da protagonista é terra devastada, disfarçada de almoxarifado abandonado. Como se emprestasse o caderno de Abigail escrito a sangue, a cearense Natércia Pontes nos embala numa pantomima familiar também cearense do início da década de 90. Abigail não tem um diário, tem um caderno, da adolescente, atada às suas vísceras, que emenda transas e ilusões paixonescas e deixa entrever quanto o amor é seu grande desejo. Há obstáculos, no entanto.

Com notas que me lembram Gran Cabaret Demenzial, de Veronica Stigger, e Copacabana Dreams, primeiro livro de contos de Natércia, ambos publicados pela extinta Cosac Naify, Os tais caquinhos esmaga qualquer ideia de uma adolescente puritana ou previsível e alarga os conflitos possíveis entre pai e filhas, órfãs de uma maternidade – não se sabe se Zoma é mãe ou madrasta de Abigail e Berta, só se sabe que ela não está ali. E é nesse buraco da ausência da goma maternal, preenchido por todo tipo de entulho, que Lúcio, o pai, se inscreve. Enlutado e engasgado pelas reticências, ele coloca, sem remorso, as filhas ao dispor do mundo, sem cogitar o que movimenta as narrativas que acontecem a caminho do colégio e não só – na casa da praia da amiga das filhas, no salão de festas, nos corredores do prédio, entre a portaria e a porta do 402.

Leia outras resenhas:

Torto Arado
Todos os Nomes que talvez tivéssemos
Demerara

É do miolo de Copacabana Dreams, que a autora expande as bordas do conto Ovo, para os 101 minicapítulos, os tais caquinhos, pedaços de uma carapaça dura e porosa de um futuro no qual duas irmãs conversam numa cozinha “abarrotada de móveis, eletrodomésticos, utensílios e cacarecos em geral”. No romance, a impressão que se tem é que Natércia volta no tempo, nessa mesma cozinha, à época em que Lúcio alertava as duas sobre o cuidado com os dentes. No conto, uma espiada no futuro adianta que, não, não houve cuidado que preservasse os trinta e dois dentes na boca das irmãs. A história completa ainda carece de um pedaço do que completaria uma história de formação, uma gema que colasse os cacos, ignorando a predisposição genética a dentes frágeis e nos dizendo afinal quem veio primeiro.

Inevitável não lembrar do conto bruxesco de Clarice, apresentado a um Congresso na Colômbia, a ver neste trecho: “Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada. […] Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.” É também da Clarice, só que do Água viva, que empresto outro trecho que me parece definir Abigail: “Sou livre apenas para executar os gestos fatais.”.

Ainda como se debochasse dos nossos palpites sobre a linha do tempo que une os fins e os inícios, Natércia repete a epígrafe, que, insistente, nos pergunta: emprestando a voz de Antonio Cicero, quem é que vai colar todos esses pedaços? Ovo, essa palavra palindrômica, também pode ser lido do fim pro início. Não tentei, mas quem sabe? Imagino que, tal qual O jogo da Amarelinha, os tais caquinhos pudessem ser colados montando outro quebra-cabeça, um quebra-cabeça em cuja cena final, a protagonista se apresse em pôr a culpa da sujeira da orelha nos insetos delirantes.

E se algum manual de escrita anglicana ousar alertar sobre o uso de adjetivos, não haveria melhor resposta do que a desfaçatez frasal de Natércia, ainda que uma ou outra dupla de adjetivos pudesse ser limada imperceptivelmente: “Uma maçaroca esférica e peluda de cera”, o “vapor sulfuroso” ao abrir a geladeira, “o intrigante bolso de Lúcio”, “minha cúmplice dentuça”, “sua presa prognata”. Ao lugar cativo dos advérbios, alguns recados: “O vento assobiava mortiço”, “E a ausência do sofá me envergonhava fundo”, “crocodilamente a postos”.

O mesmo preciosismo de quem sugere o tipo de teclado que deve acompanhar a trilha sonora da leitura do conto e sabe que são 15h42 ou 11h37 lá no Copacabana Dreams de 2012, acompanha a Natércia de 2021 que não deixa passar nada. O detalhe do inventário dos objetos emprestados de Aramis com uma tabela comparativa das devidas importâncias para cada um deles – em geral, nenhuma importância pra Abigail a não ser fazê-lo passar raiva -, o hálito de ovo de Berta, a saudade do lixo, as escolhas sóbrias de Berta traduzidas num filé à Oswaldo Aranha – e lá está de novo o ovo -, um pai que se preocupa com a arcada dentária, mas não com a alimentação, uma descrição cartesiana para uma personagem que se acostumou a cultivar dúvidas, as musiquinhas ternas e esperançosas inventadas, os vais e véns da vida financeira de Lúcio, à mostra pelos garçons mais ou menos solícitos com Berta, Abigail e seus amigos a depender da época, uma saca de sal e uma geladeira cheia de vez em quando. Para passear por esses detalhes, um ou outro capítulo poemático, oulipiano, confere os espaços de respiro que os entulhos do apartamento 402 não tem. Se eu pudesse demarcar um ruído, diria que a narração do capítulo Pão cediço deu pormenores de corredores que a visão da narradora não parecia alcançar. A adjetivação kitsch entalhada nas descrições quase faz, vez ou outra, a história escorregar, mas, notadamente, forma e conteúdo se dissolvem na decadência encapsulada de uma família em pedaços. É como se cada descrição nos propusesse um reconhecimento do caco estirado no chão, somente nomeável a partir da análise da arcada dentária.

O episódio em que presenciamos a violência do namorado neozelandês num possível aborto é o cume da resiliência de Abigail. Ela é íngreme e sabe que a vida é áspera. Ainda que tenha parecido, até ali, que há muito tempo essa mãe fantasmal foi embora, Abigail nos conta que a partida de Zoma, Huga e Ariel era recente. Um olhar desatento desenharia um quadro de anos. Antes de sabermos mais sobre o que aconteceu, uma carta amorosa de um Lúcio que acredita no amor e nem mesmo se preocuparia com panelas de pressão prestes a explodir lembra que ele está ali, sempre atento, e finge que vê tevê. Os personagens de Os tais caquinhos parecem estar levando a sério a frase de um conto de Copacabana Dreams, “No fundo todo mundo quer a mãe de volta. Aí, quando ela não volta, a gente pede um Campari.”. É esse Campari, puro e sem gelo, que a gente engole a seco ao ouvir o fluxo de consciência entrecortado de uma adolescente agoniada, “tal qual a dobradiça da porta do armário rangendo”.

Deixo aqui uma menção honrosa para o capítulo em que se dá a visita do gafanhoto, uma das melhores passagens sobre insetos da literatura brasileira, assustadoramente possível de se fazer uma ponte com nosso inevitável hoje: “As antenas compridas e rugosas tremiam sutilmente, e essa era a única evidência de que estava vivo.”. E também: “Eu e o gafanhoto ficamos parados como se fôssemos uma fotografia de um baile macabro, cuja corte débil se deixava conduzir pela dança de São Vito.”, uma epidemia que fez com que centenas de pessoas, num episódio de histeria coletiva, dançassem e cantassem em volta de igrejas, entre os séculos 15 e 17. A protagonista se pergunta: “Ele estava mesmo vivo?”, que é o que temos nos perguntado, afinal, sobre aqueles que seguem dançando. 

Abigail nos lembra que Lúcio, o pai, repetia seus dois conselhos permanentes: é bom sentir fome e é bom cultivar o pensamento livre, uma delirante confissão, aparentemente inconfessa, de todas as certezas-dúvidas que constituem a personagem-narradora, “livre apenas para executar seus gestos fatais”, nos lembra Clarice. De novo. Entre ruídos de consciência, delírios oníricos e as ruínas orgânicas que depõem contra um pai amoroso, mas temporariamente perdido nas suas próprias cinzas, percebemos que Abigail se transforma, numa trajetória errante, da adolescente com as orelhas entupidas de cera na mãe principiante que guarda um edredom limpo e novo e ensaia contar a Lúcio que ele vai ser avô.

Para Santo Agostinho, algum rastro do passado está sempre presente no agora – ainda que numa imagem de derretimento persistente, em que escorrem entre a moldura quaisquer heróis possíveis. Em volta de seus corpos, sobram drosófilas, que, para emprestar uma dupla adjetiva da autora, perversa e divertidamente, plainam por sobre os pedaços de pão deixados para que os personagens se lembrem do caminho de casa. Em um cenário em que nosso presente está anestesiado e a luta pela manutenção da vida nos lembra que o mar que enxergamos não se restringe a uma paleta de cinzas, Zoma, o futuro e a geladeira cheia fazem falta.

Serviço

Os tais caquinhos, Natércia Pontes. Companhia das Letras, 141 páginas, R$ 64,90 (papel) ou R$ 39,90 (e-book).

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima