Podcast – O homem simples

Toma café, almoça e janta. Não gosta de novidades: o pão é com margarina, uma fatia de queijo;  presunto, de vez em quando. O copo do café com leite é o mesmo de muitos anos. Não usa pires porque é […]

Toma café, almoça e janta. Não gosta de novidades: o pão é com margarina, uma fatia de queijo;  presunto, de vez em quando. O copo do café com leite é o mesmo de muitos anos. Não usa pires porque é frescura. A piada favorita sobre o prato favorito é: “cheio”. E ri enquanto come e não respeita quase nada da etiqueta. É original, tem o seu jeito, a vida toda. Não vai mudar porque os outros não gostam.

O sentimento é quase todo para a família. Um pouco para o futebol e para os poucos amigos que reúne, de vez em quando, na varanda que dá para o pequeno jardim na frente da casa. Copos de cerveja – de uma marca só, a que sempre foi e continua a ser a melhor, mesmo sem experimentar qualquer outra marca – com os petisquinhos que de tempos em tempos a esposa solícita traz da cozinha.

Do mundo conhece só o universo do trabalho e dos programas de variedades. Não lê jornal, não assiste aos jornais da tv. Na internet, aprendeu um pouco como navegar com o neto impaciente, mas prefere trocar mensagens nos grupos de WhatsApp, principalmente vídeos engraçados ou mensagens edificantes, com músicas altas de fundo. O homem simples vai ficando velho e se sente experiente, sem reparar que repete as mesmas ideias e conta as mesmas histórias o tempo todo: a terapia boa é a do cinto; é melhor ver filho morto do que filho gay; político é tudo ladrão; o que falta no Brasil é uma guerra, como aconteceu nos países desenvolvidos; pobre só reclama mas se oferecer pra carpir um quintal não aceita; racismo não existe, as pessoas é que não têm mais bom humor pra nada. Para qualquer assunto ele tem um exemplo de seu trabalho que associa, mesmo que as realidades não tenham nenhum elemento de proximidade. Mas daí o tema principal já se esvaneceu e todos acabam ouvindo, mais uma vez, “a voz da experiência”.

Evidentemente, o homem simples, que ama a esposa e os filhos (e netos, quando chegam, tornando-se o avô legal) detesta a política e o mundo público. As coisas do mundo sempre se organizam de maneira insidiosa para atrapalha-lo, seja o caixa eletrônico ou as novas regras de pagamento do iptu. Cético profissional, suspende o juízo sobre tudo e todos e reorganiza o mundo a partir de seus conceitos – três ou quatro – que se adequam às situações mais diversas,  como nos exemplos das histórias que conta. Sempre tem razão, embora razão não seja uma palavra muito adequada para a ordem dos termos que enuncia. Tudo é simples, repete: ordem, disciplina, sacrifício. E conta mais umas três ou quatro histórias sobre sua vida para demonstrar o quanto tem razão. Ou isso que ele chama de razão.

A teoria do modelo é a inspiração para quase todas as ideias do homem simples. O importante é respeitar o que está aí desde sempre e que, na sua opinião, nunca deixou de funcionar. Nunca ninguém reclamou de como o mundo sempre foi. Agora é que é uma gritaria, diz, categórico, enquanto a esposa enche seu copo de cerveja antes do almoço que ele espera ansioso, mas nunca sem deixar de elogiar a companheira: “a comida dela é a melhor.” E mais uma vez, a piada repetida: “aprendeu comigo!” E ri, o homem simples que mal sabe fritar um ovo.

O homem simples sempre vota em pessoas simples, com propostas diretas, em defesa dos valores que ele admira: família, ordem, disciplina, sacrifício. Família que é aquela que ele aceita e reconhece como família; ordem como aquela que ele deseja; disciplina como aquela que ele exerce – acordar cedo, colocar o lixo para fora, café da manhã, almoço e jantar na hora certa, sempre servido pela esposa querida, dormir nunca além das onze, repetir o ciclo; e sacrifício de não ter tido as oportunidades e os salários que julga merecedor e que não tem por causa de algum safado ou por causa de uma lei que protege algum safado, mas que com a eleição de outro homem simples tudo vai mudar e as coisas vão voltar aos seus eixos.

Como há pouca coisa a ser afirmada, defendida e justificada – exceto pelo argumento “sempre foi assim e sempre funcionou” – o homem simples opina quase sempre de forma negativa. Ou seja, é um reclamão. E a base das reclamações é também, quase sempre, de fundo nostálgico, de um tempo no qual ser como ele, tê-lo como modelo, era o máximo de admiração. Deixar de ser esse modelo parece que o entristece e irrita. Os netos, por exemplo, não  ouvem seus conselhos e mesmo os filhos evitam de aparecer por lá. Ele fica magoado e culpa os modismos, dizendo: “agora nada pode ser dito, agora todo mundo se sente ofendido, agora todo mundo tem problema e quer ajuda do governo, agora todo mundo quer ser diferente, sem respeitar mais nada”. O homem simples torna-se um conspirador. Nos seus grupos de WhatsApp replica, furioso, mensagens de fim de mundo. E, no fim da tarde, sentado na varanda que dá para o pequeno jardim, diante da esposa com a garrafa de cerveja na mão, suspira: “agora só falta quererem dizer que eu não fui um bom chefe de família”.

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