Se fosse outro o ano de lançamento, Demerara, o romance de estreia de Wagner G. Barreira talvez tivesse outra leitura. Como saiu em meio à pandemia de coronavírus, é quase impossível não ver o livro como uma versão semificcional da chegada da gripe espanhola ao Brasil, em 1918 – embora essa parte do relato ocupe menos da metade da narrativa.
O centro da história é um galego que parte de Vigo num navio com destino à América: o personagem é real, trata-se do avô de Wagner Barreira, que acabou aportando em São Paulo e formando família aqui pelo Brasil. Por azar, viajou exatamente na embarcação que trazia um vírus mortal junto com a tripulação.
Bernardo Barrera sai da Espanha imaginando que nem vai desembarcar em território americano. Vivendo de pequenos trambiques, namorado de uma prostitua que o abandona, ele é descoberto quando tenta enganar o chefe das malandragens no porto. Se ficar, morre. Ele, que estava acostumado em contrabandear passageiros sem passagem para navios, pensa que é a sua vez de zarpar.
O plano era só dar um tempo em alto-mar e voltar. Mas aí o destino interfere e tudo vai saindo do controle de Bernardo. O primeiro problema é justamente o vírus: perto do primeiro porto brasileiro, no Recife, descobre-se que o navio está infestado pela gripe, com gente morrendo e sofrendo como Bernardo nunca tinha visto.
No Brasil, onde afinal acaba aportando, ele acaba ganhando preso (mas chega de spoilers, melhor não contar o porquê) e como punição tem de carregar os corpos dos mortos pela gripe, que rapidamente se espalha pelas cidades brasileiras. As cenas são fortes, principalmente para quem vive o que vivemos hoje, mas sem nenhum tipo de vulgaridade: Barreira se sai bem no maior desafio da narrativa de estreia.
Mas Demerara é mais do que a história da viagem, muito mais do que a chegada da gripe ao Brasil. É o registro da chegada dos imigrantes a uma São Paulo enriquecida pelo café; é o relato das brigas e sufocos enfrentados pelas comunidades de diversos países, vivendo em pequenos guetos semiautônomos; é a história do movimento sindical em seus primeiros momentos num país que começava a se urbanizar e a se industrializar.
O livro, breve e inteligente, deixa transparecer o quanto de pesquisa foi feito (jornalista experiente, Barreira viajou para Vigo para conhecer a cidade de onde partiu o avô) e monta uma reconstrução bastante convincente do Brasil dos anos 1910-1920.
O texto, como acontece em muitos relatos de jornalistas, não é exatamente inventivo, mas é funcional e límpido, e serve perfeitamente ao propósito de contar a história. Uma estreia que passou meio despercebida mas que merecia mais destaque.
Serviço
Demerara, de Wagner G. Barreira. Editora Instante, 152 pp., R$ 49,90.