Jamil Snege e a arte de tornar-se invisível em Curitiba

Esta terça-feira (16) marca os 20 anos da morte de Jamil Snege, um dos escritores mais talentosos que Curitiba já viu (e ignorou)

Em Curitiba, “capital literária” do Brasil, pulsa uma energia desconhecida, um mistério que o escritor Wilson Bueno (1949–2010) descreve nas primeiras linhas do livro Bolero’s Bar: “Minha Curitiba não se publica, antes se guarda – secreta facínora – no coração”. Talvez isso explique alguns nomes obnubilados, às vezes, com ciúme, por fãs que, ao modo hipster, mantêm um álbum/banda em segredo e integram uma franco-maçonaria que teme o mainstream, a modinha, secretamente satisfeita com isso. Jamil Antonio Snege (1939–2003) é possivelmente um dos autores mais admirados e desconhecidos do Brasil, sendo parte desse mistério. Por um jogo igualmente oculto de energias, o “segredo” Snege insiste em ser guardado no bolso interno do casaco da cena literária. 

Não é raro encontrar um ou outro leitor lamentando nas redes sociais a dificuldade de acesso à obra do autor que, apesar de incluir uma reedição de “Viver é prejudicial à saúde” (Arte & Letra, 2021), ainda permanece desconhecida. Agora, o leitor brasileiro tem uma nova oportunidade de conhecer (mais) o Turco, como o escritor era conhecido entre amigos, com a reedição de “Como tornar-se invisível em Curitiba”, também pela Arte & Letra. Lançado originalmente em 2000, o livro reúne 25 crônicas publicadas originalmente na “Gazeta do Povo” entre 1997 e 2000. Editado à época pela Criar Edições, editora do escritor e jornalista Roberto Gomes, com quem Snege dividia o espaço da coluna no jornal ao lado do escritor Carlos Dalla Stella, o livro encontra uma unidade em si que desafia a lógica teórico-formal da crônica.

Jamil Snege

No mesmo ano da primeira publicação de “Como tornar-se…”, a editora Travessa dos Editores lançou “Os Verões da Grande Leitoa Branca”, livro de contos que, entre os 22 publicados, reúne textos impressos no jornal, entre outros inéditos e antigos. Nos dois livros, portanto, notam-se textos de gêneros híbridos. Conto e crônica se misturam e, no fim, não faz a menor diferença. Contudo, é em “Como tornar-se…” que vamos encontrar a sequência de parte de seus trabalhos na ficção, com o mesmo estilo e em um mesmo universo – ou microcosmo – de toda sua obra ficcional: Curitiba.

Ao escrever sobre literatura e mercado editorial paranaense, é inevitável não falar em “provincianismo” que, por aqui, parece ter ganhado um significado único e explica parte do mistério do desconhecimento supracitado, fenômeno este antigo o suficiente para que este livro carregue um valor atemporal. Em qualquer cidade que tenha enganado seus artistas dando a entender que eles eram importantes será possível ler os mesmos tipos, os mesmos problemas urbanos e as angústias de espírito dos “gênios” injustamente não reconhecidos.

Afinal, a primeira condição para se tornar invisível é “ter talento genuíno”. Penso em todos artistas quando leio a crônica que abre e dá nome ao “Como tornar-se invisível em Curitiba”. De alguma forma, compactuo com o acordo tácito de manter o autor desconhecido, carregando seus livros como pequenos tesouros. Lançados a uma indiferença cativa, os artistas deliberam qual será seu próximo passo cego que projetará a aniquilação de si mesmo no outro, girando a roda do apagamento. “Cada conquista, cada livro publicado, cada poema, escultura ou canção, cada tela, espetáculo, disco, filme ou fotografia, cada intervenção bem-sucedida no esporte, no direito ou na medicina, cada vez que alguém, lá fora, reconhecer com isenção de ânimo que você está produzindo obra ou feito significativo – o seu grau de invisibilidade aumenta em Curitiba.”

“Viver é prejudicial à saúde”

Essas linhas pegam qualquer um desprevenido. É quase como se valesse a pena não ter talento, ou ter e continuar sendo um zé-ninguém. Os grupos endogâmicos, que às custas da família, do dinheiro público, dos poucos aplausos recebidos, das visualizações na casa da dezena em seus vídeos no YouTube, das tiragens minúsculas para leituras parcas, sobrevivem de validações filosóficas para o próprio trabalho, do amor pela arte, e buscam desesperados no próprio Jamil, ou em qualquer outro conhecimento secreto paranaense, o pretexto perfeito para a sua não existência.

“Se mesmo assim você se mantiver fiel ao seu daimon, à sua lenda pessoal e não arredar pé de seu destino, a invisibilidade torna-se então um processo irreversível. […] Desse momento em diante, só os inimigos falarão de você. Falarão mal, obviamente. E o mais curioso: à maioria desses ‘inimigos’, a noventa por cento deles, você jamais falou, jamais sequer foi apresentado. Os amigos a gente escolhe; os inimigos escolhem-se a si próprios.”

Essa indignação é eco, em parte, de suas obras anteriores. Lançado em 1968, “Tempo sujo” foi publicado pelo selo editorial Escala e bancado (como praticamente toda sua obra) do próprio bolso, antes de a crítica especializada (seja lá o que isso for) ter declarado a falência do gênero autoficção, praticando o corajoso ofício de registrar os nomes de seu tempo em uma novela cáustica sobre périplos juvenis. Na história, Otavinho, estudante de jornalismo desiludido que transita nos círculos culturais da cidade e na boemia, promete escrever um livro sem freios morais enquanto tenta transar com o máximo de garotas dos grupos que frequenta. Em determinada altura, solta: “Em Curitiba o cara deve trabalhar em sigilo, não falar nada prá [sic] ninguém, senão fica no projeto.”

Como é possível perceber, o humor e a ironia, marcas registradas do estilo do Turco, são as principais ferramentas para a quebra da expectativa do leitor, algo notável nas produções de “Como tornar-se…”. Somando o primeiro texto da publicação com outros sobre a condição do artista apagado, o livro funciona em parte como um “diário desafetivo” de um autor que busca no riso alguma resposta para perguntas hoje esgotadas. Sim, Curitiba sufoca seus artistas talentosos e acolhe Freitas (um dos arquétipos presentes em alguns dos textos) que se entope de empadinhas em um lançamento de livro, por mais que afirme ser muito próspero (“Empadinhas, dólares, poesia”), ou o político de índole duvidosa que possui uma conta bancária gorda e invejável, bendiz ao seu modo a meritocracia, a família, e, taxativo, pede o fim da corrupção (“Meu abominável homem público”). Diante da resposta desanimadora encontrada, Jamil finaliza a crônica que nomeia a coletânea: “Para encurtar: vale a pena manter-se fiel ao seu daimon e cumprir com resignação cada etapa de sua lenda pessoal? Acho que sim. Curitiba está cheia de pessoas invisíveis”.

Arte & Letra

Relendo cada um desses textos que integram o livro, penso que, se estivesse vivo, Snege continuaria debochando e rindo de todos nós – e dele mesmo, claro. Em “A arte de tocar piano de borracha”, por exemplo, respondendo à acusação de que no Paraná não há literatura, Jamil propõe o exercício de escrever em um ano “um romance ou novela tão bom quanto qualquer García Márquez – desde que alguma entidade me oferecesse uma bolsa que permitisse minha sobrevivência durante aquele período”. As apostas aumentam e ele se compromete a devolver o valor se o livro não fosse tão bom e, depois de imaginar o que seria essa experiência (teria capacidade? Seria ele um pretensioso?), percebe que não irá a lugar algum. 

Ninguém o respondeu: “A velha história do piano de borracha. O cara estuda anos a fio […] mas quando fere o teclado não se ouve som algum. […] Um piano de borracha à sombra dos pinheirais. Se você quiser tocar, pode. Mas não vá exigir que alguém escute. Ninguém viu, ninguém ouviu e quem ouviu fingiu que não viu.” Contudo, o piano se escutou longe. Na empreitada de se autopublicar e ser lido, Snege alcançou nomes como Hilda Hilst (1930–2004), que dedica um poema de “Alcóolicas” (1989) a ele; Joca Terron; Marcelino Freire (“Rasif”, de 2008, também é dedicado a Jamil); Ernani Ssó; Marçal Aquino e vários outros.

Curitiba não só não ouve os seus artistas, mas também deturpa a realidade e mascara a própria violência, como Snege registra em suas crônicas. Em “O paraíso de Fernandinho”, a convite de seu amigo, Snege vai visitá-lo em um condomínio fechado no bairro Santa Felicidade, onde se pode deixar as janelas do carro abertas e todos estampam o mesmo sorriso. “Um sorriso aberto para ser usado apenas em condomínios fechados […] Estou a três passos da calçada e nenhum mendigo intimou-me a contribuir para uma mais justa distribuição de renda.” A bronca com Curitiba e seu discurso ilusório de “cidade sorriso” e “capital europeia” se explica, em partes, porque Jamil ganhava a vida como publicitário e reconhecia o âmago da linguagem construída pela propaganda. 

Publicado pelo selo Biblioteca Paraná em 2017, o livro “Roteiro Literário: Jamil Snege”, do escritor Miguel Sanches Neto (que foi amigo do Turco) afirma em análise da crônica: “o que está em jogo é a corrosão do discurso publicitário da urbe, contra o qual o escritor se opõe. A literatura funciona como uma antipublicidade, oportunidade de usar os seus conhecimentos desta área profissional para anular os efeitos ilusionistas gerados por ela.”

A reflexão é válida. Em 1995, Snege publica “Como eu se fiz por si mesmo” e registra: “Pago para escrever o que quero com o que ganho para escrever o que não quero”, ou seja, a publicidade é o que garante seu sustento, mas a literatura é o que interessa. Em outro trecho, o autor escreve que “Curitiba é uma coleção de círculos concêntricos, uma cidade dentro de outras cidades, cada qual com o poder de anestesiar a consciência do mundo”, colocando a questão endogâmica de novo, mas também sugerindo múltiplas leituras. É curioso notar, também, que o livro – que mistura autobiografia, ficção e prosa poética, além de ter registrado centenas de nomes verdadeiros – foi escrito originalmente no início da década de 1980 e mofou na gaveta até ser publicado pela Travessa dos Editores, pelo jornalista, escritor, e amigo próximo de Jamil, Fábio Campana (1947–2021), um dos nomes mais importantes da cena política e cultural da cidade.

Em cada texto de “Como tornar-se invisível em Curitiba”, a cada novo retrato construído, imagem criada ou sentimento descrito, às vezes com o sarcasmo de um flâneur amargo a contragosto, surge uma nova crítica-reflexão sobre algo e/ou nós mesmos. Curitiba é uma obsessão: em “A cidade de nossos exílios”, Snege recebe guias literários da cidade de Lisboa de um amigo e, junto, o convite para escrever um guia semelhante de Curitiba, percorrendo, então, o roteiro lusitano para afirmar no desfecho que não conseguiria realizar a escrita. “Apanho o guia de Saramago e começo a folhear. A primeira foto que encontro, em página dupla, é de um bonde. […] Minha Curitiba é um cão ladrando para a lua da memória. E o único bonde que temos está parado. Não vai a lugar nenhum”. Os sentimentos ambíguos suscitados pela cidade ainda aparecem em “Canto de amor e desamor a Curitiba”: “Há uma Curitiba sonâmbula, vigiada por uma lua de osso contra a qual se lançam os cães da insônia, e uma plácida Curitiba em quarto-crescente, com suas tetas povoadas de êxtases e ternuras”.

“Como tornar-se invisível em Curitiba”

Quando li “Viver é prejudicial à saúde” em 2013, foi inevitável não pensar em como Snege incomodava. Hoje, dez anos depois do primeiro contato com o autor, me surpreende a premência de vários dos textos que suscitam diversas problematizações dignas da chamada cultura do cancelamento: a figura do esquerdomacho (“Como eu seria mulher”); os partidários das constelações familiares e curas quânticas (“Você já foi Cleópatra?” e “Onde você estava em 1500?”) sobrando até para os calvos e fumantes (“Meus cabelos longos e lindos” e “Viver causa impotência sexual”) que, no fim, tratam-se de profundas reflexões sobre a condição humana.

Claro, Jamil falou muito sobre amor em sua obra e um dos melhores textos no livro é, justamente, sobre o sentimento inconfundível e inefável do amor, um louvor à “arte do adeus” em “Para matar um grande amor”. Arrisco: este texto, tal qual o primeiro do livro “Como tornar-se invisível em Curitiba”, poderia facilmente ter sido extraído do seu romance “Como eu se fiz por si mesmo”. A crônica da invisibilidade figuraria na primeira metade do livro, perto do capítulo oito, que alerta o leitor sobre a grande conspiração que existe contra ele (você): “Querem reduzir você a pó de traque. E usarão de todos os truques para isso”. Para matar um grande amor, por sua vez, estaria mais para o fim, na parte em que cabem os textos mais herméticos, nas duras reflexões da vida de quem assimila, sem alternativa, estar sozinho e prenunciar a própria morte, como é próprio de poetas profetizarem.

Esse intertexto involuntário permite uma conclusão óbvia: há uma sequência em sua obra que constrói um universo próprio onde Curitiba é o cenário e palco do escritor designado a encenar o papel de si mesmo: às vezes de anti-herói e, em alguns momentos, de sábio, ou de uma criança que contempla o mundo com encantamento genuíno e enxerga Deus nas pequenas coisas. No fim da vida, após a descoberta do câncer de pulmão que o matou, seus textos no jornal assumiram um tom de redenção com o mundo.

Nicolau

Em “Como tornar-se invisível em Curitiba”, encontramos sobretudo a antirreceita literária que Snege trabalhou ao longo dos anos, com ironia e humor como principais marcas, e o exercício constante do que afirmou ser o “ritual de busca” da literatura, em entrevista à jornalista e escritora Marília Kubota, publicada no “Nicolau”. “Feliz é o indivíduo que tem a capacidade de rir de si mesmo”, respondeu quando inquirido sobre como lida com humor. Uma sugestão pública para os editores: uma reedição ampliada com algumas crônicas publicadas apenas em jornal. Isso surpreenderia mais ainda o leitor desavisado que facilmente confundiria textos como “Curitiba rachada ao meio” (a polarização durante a eleição para prefeito de Curitiba entre Angelo Vanhoni e Cássio Taniguchi em 2000), “A mão que aponta a arma” (uma sensível descrição de um assalto cometido por um adolescente) ou “Escritor, olhos verdes” (que em tempos de booktubers e romantização desproporcional da figura do escritor fica impossível não pensar em dancinhas e outras apelações exigidas pelas novas mídias para conseguir leitores), com reflexões de nossa década.

Jamil Snege afirmava nunca ter recebido uma resenha negativa e reler e escrever sobre ele é o retorno inevitável da samsara a nível paroquial: estamos indo para as mesmas praias, nos refugiamos da violência em condomínios ou nos vetores uberísticos, sempre evitando as praças do Centro, matando amores ou sendo mortos, tocando tristes punhetas enquanto caem os cabelos e engordamos gradativamente. Até as resenhas continuam favoráveis, como esta.

(O jornalista Lucas Silveira de Lavor é editor da revista literária “Obsoletos”.)

Livros

De Jamil Snege, a editora Arte & Letra publicou uma nova edição de “Viver é prejudicial à saúde” em 2020 e, agora, se prepara para fazer o mesmo com “Como tornar-se invisível em Curitiba”, que deve sair no segundo semestre de 2023.

Sobre o/a autor/a

2 comentários em “Jamil Snege e a arte de tornar-se invisível em Curitiba”

  1. Mariângela Guimarães

    Discordo da afirmação colocada entre parênteses de que Curitiba ignorou Snege, tanto que o próprio texto diz que ele tinha uma coluna na Gazeta do Povo, que naquela época era um jornal de grande tiragem e o mais lido na cidade. Mais correto seria dizer que o Brasil ignorou, como até hoje acontece com tantos escritores e artistas de grande talento que estão fora do eixo Rio-São Paulo.

  2. Pelas coincidências da vida, entro hoje no café Art & Letra e me perco nas centenas de títulos a venda. Mas me interesso apenas pelo que é publicado pela própria editora, e apanho da prateleira um título que talvez descreve o meu jeito de ver a vida “Viver é Prejudicial à Saúde”, e coloco embaixo do braço. E sou surpreendido pela simpática moça que nos atende no local, quando ela me pergunta se eu havia lido a reportagem de hoje no Plural. Eu nego, e adiciono que eu sequer conheço o autor.
    E, agora lendo a reportagem, me sinto um perfeito Curitibano.

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