Ele inventa cursos que não têm nada a ver com o “mercado”. E funciona

André Tezza criou uma pós para dar repertório e uma disciplina sobre a arte da viagem. E lotou turmas que o seguem mesmo sabendo que isso não dará vantagens imediatas no mercado

André Tezza é um humanista trabalhando num ambiente que cada dia se preocupa cada vez mais com o mercado de trabalho. Mas nada de desânimo. Ao invés de se dobrar às exigências mercadológicas da universidade, decidiu abrir nichos em que a cultura, as artes e o pensamento clássico atraem os alunos tanto de fora quanto de dentro do campus.

Sua pós, Cultura e Comunicação, tem como professores alguns dos principais artistas e pensadores da cidade – e gente de fora também. E ao invés de discutir coisas diretamente aplicáveis no dia a dia dos comunicadores, fala sobre aquilo que todo mundo com interesse numa boa formação deveria conhecer: de Shakespeare a Stravinsky, de Montaigne a Freud.

E, por incrível que pareça, deu certo. No ano passado, foram 34 alunos. O melhor dos mundos para a universidade (no caso, a Positivo, onde André dá aulas há mais de uma década), com um curso de qualidade dando lucro.

De dois anos para cá, outra inovação, dessa vez como optativa para Comunicação e Design, uma disciplina in titulada As Artes do Viajar. Sim: a viagem como tema de um curso universitário. Na entrevista abaixo, Tezza fala sobre isso e muito mais.

Hoje o ensino superior é vendido muito como ferramenta para subir na vida… Como convencer as pessoas a fazer um curso tão abstrato, que parece “não servir pra nada”?

Em um país tão desigual como o Brasil, pesquisas apontam que, na média, existem diferenças enormes de salário considerando o nível de escolaridade individual e, portanto, é compreensível que muitos busquem a universidade como uma forma de ascensão social. Porém, muitas vezes esta visão de propósito da educação leva a dois equívocos diferentes. Primeiro, acreditar que a única função da escolaridade (e aqui não estou pensando somente no ensino superior) seja o aprendizado de uma profissão. A escola sempre será profissionalização em algum sentido, mas não se reduz a isso. A escola é também um espaço de compreensão e encantamento de mundo, de cidadania, de discussão da ética, de abertura para o novo e o diferente — a escolaridade é uma força poderosa de transformação individual e coletiva. Nenhum país desenvolvido do mundo deixou de lado uma visão mais ampla da educação.

O segundo equívoco é presumir que para uma melhor formação profissional os únicos conteúdos que importam são aqueles de aplicação imediata no mercado — e, por decorrência, cursos de artes e humanidades, como a nossa pós-graduação, seriam supostamente inúteis. O problema da formação restrita àquilo que o mercado profissional demanda é que o mercado de amanhã certamente será diferente do atual. A inovação tornou-se um imperativo para a sobrevivência dos países e das empresas — e a inovação só é possível por meio de uma formação que também contemple o exercício da criatividade e não somente a repetição daquilo que já é conhecido.

Por conta disto, já há algum tempo, presenciamos um movimento nas teorias e práticas de educação, no sentido de valorizar uma formação interdisciplinar em que o conteúdo das artes e das humanidades seja entendido não só como abstração, mas também como aliado para uma cultura de inovação.

Em um livro recente, “Originais”, Adam Grant, professor da Universidade da Pensilvânia, fez uma espécie de radiografia do que são pessoas e empresas revolucionárias. No livro, há um capítulo sobre a importância fundamental da arte para aqueles que mudam o mundo, em qualquer área do conhecimento. Não são impressões, mas pesquisas e estatísticas — por exemplo, as chances de um cientista que tem interesse por literatura ganhar um Nobel, em qualquer área, são 12 maiores do que os cientistas sem o mesmo interesse. Ou ainda: cientistas com interesse em artes cênicas terão 22 vezes mais chances de ganhar um Nobel. Sabe aquele interesse de Einstein pelo violino e a música? Não é a exceção — é a regra entre cientistas geniais.

Te surpreendeu a procura nestes anos? Qual é o público típico?

Nem sempre conseguimos abrir o curso, mas no ano passado a procura foi excepcional — a atual turma tem 34 alunos, o que é um número muito acima da média nas especializações de humanas. Creio que a mudança da nossa pós para a sede da Universidade Positivo na praça Santos Andrade facilitou o deslocamento dos alunos.

Nosso público é composto, sobretudo, por três grandes grupos. O principal é formado por egressos da comunicação e do design, em que o repertório e a criatividade fazem parte do exercício profissional. Mas também temos grupos de professores (especialmente do ensino médio) e grupos de artistas (músicos, atores, fotógrafos, entre outros, já fizeram ou fazem o curso).

O que teremos para este ano?

A estrutura das disciplinas e dos docentes não mudou muito ao longo dos anos. Então temos disciplinas que contemplam interfaces da comunicação com aspectos da cultura e da arte (literatura, música, artes plásticas, moda, fotografia, espaço urbano, entre outros).

Naturalmente, sou suspeito para falar, mas entendo que o corpo docente (formado não só por professores, mas também por artistas) é bastante diferenciado e contribuiu para o interesse no curso. Outro diferencial que tem atraído os alunos é a possibilidade de realizar um trabalho de conclusão de curso que seja um produto e não um texto acadêmico. Já tivemos no decorrer dos anos alunos que apresentaram CD de música, mostra fotográfica, peça de teatro, documentário, entre outros, como TCC.

Você fala muito da importância de repertório. Se explique.

O repertório é uma ampliação das nossas formas de compreender o mundo. Enriquece o olhar, multiplica aquilo que entendemos por humanidade. Do ponto de vista profissional, repertório é uma das chaves para o desenvolvimento da criatividade, porque nunca criamos a partir do nada, mas das reinvenções daquilo que já conhecemos. Quando observamos a formação de grandes profissionais da comunicação e do design, ou ainda, da formação de artistas e professores excepcionais, o normal é que apresentem um repertório cultural acima da média.

Você também inventou uma disciplina sobre As Artes do Viajar. O que é isso?

“As Artes de Viajar” é uma disciplina optativa oferecida para as graduações de comunicação e design da Universidade Positivo. O que me motivou a estruturar a disciplina foi uma tentativa de ampliar o repertório dos alunos, em especial a leitura, por meio do tema da viagem.

A viagem é uma espécie de zeitgeist contemporâneo e, para os mais jovens, o interesse é enorme, mesmo entre os mais pobres. Aliás, há pesquisas que mostram que, em alguns países, o interesse por viajar é maior do que o de casar ou ter filhos — não por acaso, o turismo se tornou a maior indústria do mundo.

Vi neste interesse uma oportunidade para trabalhar repertório com os alunos, porque, apesar da complexidade de se definir o que é uma identidade cultural em tempos de Internet, a arte ainda permanece como uma forma poderosa de síntese de povos e destinos. A partir deste pressuposto, temos eixos temáticos como literatura de viagem (que entendo como uma excelente opção para a formação de leitores, sem contar que escritores consagrados se dedicaram ao gênero), road movies, fotografia de viagem, música e identidade, culinária e identidade, pintores viajantes, entre outros.

Qual foi o resultado desses dois primeiros anos?

O objetivo primeiro da disciplina é a formação de leitores. Não consegui que todos se tornassem leitores — este é um desafio bastante complexo e não envolve somente a sala de aula. No entanto, muitos leram e vi um entusiasmo verdadeiro e incomum nos alunos. Penso que também é papel fundamental do ensino dar as chaves para tornar o mundo um lugar de curiosidade e de encantamento. E num momento em que presenciamos uma escalada macabra de apatia e problemas múltiplos de saúde mental entre os jovens, a disciplina ganha também uma importância de outra natureza.

Existe esperança de que a academia seja ainda um lugar de alta cultura e reflexão?

É difícil responder esta pergunta, mas é preciso fazer uma observação: no caso do Brasil, mesmo no espaço da universidade, nunca houve um tempo em que a alta cultura fosse de fato a norma. Ainda que pessoalmente acredite que a grande arte seja um patrimônio fundamental da humanidade e, em uma situação ideal, estaria à disposição de todos, reconheço que a própria academia tem elaborado teorias relevantes que questionam a importância ou a definição da “alta cultura”, o que é uma dificuldade a mais em jogo. De todo modo, quando o assunto é educação, penso que há outras urgências e prioridades para a nossa academia: somos um país de iletrados, que mal sabe ler e escrever, inclusive entre os concluintes do ensino superior.

Suponha que você fosse indicar a um afilhado em formação intelectual um livro e uma viagem, quais seriam?

Meu primeiro impulso, na hora de indicar um livro fundamental, sempre será um clássico — uma peça de Shakespeare, um ensaio de Montaigne, um exemplar notável da literatura russa ou latino-americana. No entanto, essas são dicas para quem já é iniciado e entendo que o maior desafio contemporâneo nem é mais chegar a um clássico, mas simplesmente conseguir formar um leitor. A maioria dos jovens não faz ideia de que os livros podem ser tão imperdíveis e viciantes quanto uma série do Netflix. Quando observo os jovens que escolheram o livro mesmo com a concorrência das redes sociais, J. K. Rowling, por exemplo, parece fazer o papel que em outros tempos coube a Júlio Verne ou Monteiro Lobato.

Uma indicação de viagem? Por motivos diversos, no ano passado, estive algumas vezes na Cidade Industrial, um dos bairros que mal conhecia em Curitiba. O bairro tem uma dinâmica completamente diferentes dos demais. Talvez por não ser dominado pelo comércio e os serviços, de dia as ruas são mais vazias e silenciosas, uma raridade na cidade. É um bairro muito simples, com uma personalidade forte, cinematográfica, em que uma arquitetura residencial muito particular se impõe. Estou dando esse exemplo porque entendo que a viagem, antes de ser um deslocamento para um lugar muito longe, é um estado mental. É prestar atenção naquilo que é diferente e estar aberto para o novo — pode estar na nossa frente e não no outro lado do mundo. Viajar é um despertar para a curiosidade e as descobertas que ficam na memória podem vir de pequenas surpresas e detalhes.

Torço para que o Bernardo, meu afilhado, faça muitas e belas viagens!

Quem quiser mais informações sobre a pós, clica aqui.

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