“As Santas” quase mostra a opressão refletida no espelho enquanto homenageia Danilo Avelleda

Espetáculo em cartaz na Mostra Fringe do Festival de Curitiba traz o ator com mais de 60 anos de carreira novamente ao palco, contracenando com seu filho Diego Avelleda

O 32º Festival de Curitiba teve grandes homenagens a gigantes do palco com trajetórias fundamentais para o teatro contemporâneo brasileiro. Na Mostra Lúcia Camargo, dois espetáculos vieram nessa linha. Em “O que nos mantém vivos?” – da companhia Teatro Promíscuo, com direção de Rogério Tarifa –, o público pôde assistir Renato Borghi num momento único para quem ama o teatro: a montagem celebra os 65 anos de carreira dele da melhor maneira possível, com o ator que fundou o Teatro Oficina (junto com Zé Celso) em cena aos 87 anos de idade. Já a peça “O Traidor” foi concebida por Gerald Thomas para Marco Nanini, e marca a volta do ator aos palcos após a pandemia. Hoje ele tem 75 anos de idade e uma trajetória com mais de 60 anos dedicados ao teatro, cinema e televisão.

“As Santas”, com Danilo Avelleda

Além dessas, uma outra homenagem importante esteve em cartaz na programação do Fringe, na Mostra À Curitibana, com “As Santas”. O espetáculo tem no elenco Danilo Avelleda, aos 84 anos de idade e somando mais de 64 anos de carreira profissional, ao lado de seu filho, o ator Diego Avelleda. E a reverência a um grande artista é o maior valor dessa peça de teatro. 

O espetáculo é baseado em “As Criadas”(1947), do francês Jean Genet, texto que foi montado em 1969 pelo Teatro de Bolso em Curitiba, também com Avelleda no elenco. À época, ele interpretou Solange e, agora, sobe ao palco como Madame. Tanto lá quanto cá, dois homens interpretam mulheres (a opção por elenco masculino é sugerida pelo autor inclusive), quem hoje está no papel de Solange é Diego e Heloisa Giovenardi completa o elenco como Clara. A tradução e adaptação da nova versão é de Silvia Chamecki; a luz é de Luccas Tatarin; e a direção e sonoplastia são assinadas por Adriano Petermann.

“As Criadas”, 1969. (Foto: acervo de Avelleda.)

A Madame do Avelleda é exuberante. Com sua bengala e cauda longa de vestido, vai entrando no palco e mostrando que não se trata de um papel menor, do tipo que surge só para o homenageado participar. Por outro lado, dá para ver muito do ator na personagem em cena, e tudo bem. Ele tem no currículo a peça inaugural do Teatro de Comédia do Paraná (TCP), “Um Elefante no Caos” de 1963; a montagem de “O Carrasco do Sol” dirigida por Madalena Nicol em 1973; e a façanha de ser o segundo brasileiro a interpretar “O Diário de Um Louco”, de Nikolai Gogol, entre muitas outras coisas e prêmios. Ou seja, ele pode. Além de que é um texto do Genet, então isso cabe sem problemas. Parece exagero, mas dá para arriscar dizer que o autor teria gostado da interpretação de Avelleda. 

A essência do texto do dramaturgo francês foi mantida, diante da plateia estão duas irmãs serviçais vindas de um mundo sem filtro bonitinho (como os do instagram, para pensar no mundo de hoje), cheio de cicatrizes sociais e feridas ainda abertas. Entre o delírio e a revolta, está a ânsia pelo extermínio da altiva patroa, a dona dos vestidos que serão herdados por elas, a mulher que se permite ter amantes e vive com luxos extravagantes. A tensão cresce no quarto das empregadas até que uma tragédia acontece. 

Não há maniqueísmo, ninguém é só vítima, mas há o embate entre classes, o conflito entre opressores e oprimidos. E algumas sacadas funcionam por aqui, mesmo sem precisar acessar referências do teatro de Genet, como os espelhos. Eles estão lá, virados para o público se ver refletido de alguma maneira, a sociedade em que vivemos está refletida ali de certa forma. Num golpe de sorte ou de maestria, quem estava ao centro da plateia podia assistir a entrada triunfal de madame por um dos espelhos no palco. 

Apesar de toda essa conversa, a direção dá uma cara moderna para o conjunto. Adriano Petermann voltou para Curitiba na pandemia e parece que o público pode começar a reconhecer sua assinatura no teatro com os trabalhos da Cia À Curitibana. A pegada que eu diria pós-punk, como a de “Os Analfabetos”, também está no palco de “As Santas”, mesmo que talvez com uma intensidade menor. A escolha das músicas como trilha continua um ponto forte; o jogo com o escuro (predominante) e o claro, definindo muito da dramaticidade, também acontece (destaque para a luz contra inicial com ar etéreo e sombrio para o contorno da atriz em cena já antes do início da sessão). Artifícios inteligentes, que funcionam sem precisar de recursos gigantes, ainda estão por ali, como os atores operando lanternas – algo que pintou em “Os Analfabetos, mas antes que alguém diga que o diretor está se repetindo, lembrem-se de que até o Gerald Thomas usou isso na peça que trouxe ao Festival. Ou seja, é mais uma boa ideia do que uma simples repetição. 

Diego Avelleda e Heloisa Giovenardi, em "As Santas". (Foto de: Annelize Tozetto/Festival de Curitiba)
Diego Avelleda e Heloisa Giovenardi, em “As Santas”. (Foto de: Annelize Tozetto/Festival de Curitiba)

Entretanto, a peça não estava madura na sessão do dia 3 de abril, no Miniguaíra, e sofre com as dificuldades que toda produção independente enfrenta. Sem grana, a criatividade e o talento dão conta de muita coisa, mas não de tudo. Tem muita coisa que não se conversa entre figurino e cenário, ou que denuncia a carência de verba para produção e o cronograma apertado. Uma parte técnica, da luz, não funcionou e outras coisas quem sabe se encaixem melhor com o tempo, a adaptação do texto também soa distante da fala corriqueira em muitos momentos. Sinto falta de nuances nas interpretações das irmãs, porém talvez Genet não sentiria; e, Diego, chegou numa Solange mais interessante do que a Clara que se vê em palco. O espetáculo poderia ser anunciado como em processo na programação da mostra, mas certamente vai ganhar afinação com o tempo, ficar mais ‘azeitado’. 

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