O coisa-ruim é personagem em “O Fastio do Diabo”, o novo romance de Ana Luisa Escorel. O cenário é atual e o Diabo se tornou quase obsoleto diante da crueldade humana. Assim ele tem sua autoridade abalada e perde feio para homens e mulheres que o superam tranquilamente em matéria de maldade e poder de destruição.
Em “O Fastio do Diabo”, Ana Luisa Escorel cria uma sátira sociopolítica do Brasil, unindo passado e presente. Com humor ácido e um trabalho perspicaz da linguagem, ela perpassa 522 anos da história brasileira e conclui que o tinhoso conta com aliados formidáveis entre nós.
O livro acaba de ser publicado pela Ouro sobre Azul, editora criada pela própria autora, dedicada à literatura brasileira e a obras voltadas para a análise da realidade nacional.
Ana Luisa Escorel
O livro é dividido em três partes: “O Fastio do Diabo”, “Culpa e Castigo” e “Dando Conta do Recado”. Nelas, Ana Luisa Escorel imagina uma reunião de membros da alta cúpula do Reino Maldito, com a presença do senhor inconteste daqueles baixios, tendo por objetivo levantar o astral do anjo caído ao revelar a ele o sucesso de sua doutrina e de suas práticas, num canto muito particular de mundo.
Cabe a um Enviado, que tem como tarefa provocar e alimentar continuamente a tragédia nessa região, fazer ao Diabo o relato de suas atividades por cerca de quinhentos anos.
“O Fastio do Diabo”
“Mas tanto se o maltratou, tanto se queimou a mata, tanto se emporcalhou tudo quanto foi rio, tanto se dizimou campo e floresta, tanto se matou bicho de toda espécie, tanto se incomodou o mar, tanto se pescou de forma indevida, tanto se cavucou a terra atrás de minério precioso que, agora, os desequilíbrios são muitos, evidentes e irreversíveis”, informa com o sentimento de dever cumprido o Enviado infernal.
E como a insensatez é meticulosamente praticada por ele – mesmo em uma região onde tudo nasce e floresce como em nenhum outro lugar – o destino de grande parte dos homens e das mulheres acaba sendo golpeado por várias formas de impossibilidade.
Arsenal poderoso
Descaso, suborno, interesses escusos, manipulação da fé, silenciamento de minorias, a vitória da ignorância, o desdém com a arte, a educação, a ciência – o vil metal reina. Nesse quadro, o êxito do Enviado prospera sem parar através do arsenal poderoso que ele detém e dissemina.
“Na esfera pública incentivo o corte dos recursos em instituições de amparo à pesquisa, me esforço para manter baixos os salários dos professores em qualquer grau de ensino, para dificultar a concessão de bolsas de estudo, lutando – de forma incansável – junto às instâncias responsáveis para que sejam cada vez menores os recursos dirigidos às universidades”, diz o Enviado.
No que o Diabo, cada vez mais animado com o relato, se manifesta autoritário: “Tem que manter isso, viu”.
Fantasia
A segunda parte do romance traz uma espécie de fantasia delirante e não obedece a nenhum esquema lógico. Na terceira, a narrativa histórica incorpora o devaneio criativo da autora e o Enviado se gaba de conquistas recentes nessa esquina esquecida do planeta, onde forças progressistas ousaram subverter a ordem estabelecida pelas camadas dominantes.
A autora
Ana Luisa Escorel, hoje com 78 anos, foi a primeira mulher a vencer o Prêmio São Paulo de Literatura, em 2014, com o romance “Anel de vidro” (Ouro sobre Azul). Agora, ela publica sua terceira obra de ficção longa e amplia a versatilidade entre gêneros literários. Transitando entre a memória, a crônica, o romance – inclusive o histórico – e, agora, a sátira, a própria autora busca entender essa variedade de maneiras para chegar ao texto.
“As histórias costumam nascer junto com a própria forma. E essa forma acaba se impondo ao escritor a quem não resta, senão, obedecer, cada vez, de um jeito diferente”, diz Escorel.
Livro
“O Fastio do Diabo”, de Ana Luisa Escorel. Ouro sobre Azul, 192 páginas, R$ 59. Romance.