“A vida curta de um fato” mostra duelo entre escritor e checador

Disputa dá a medida do quanto é importante deixar claro para o público leitor o que, num texto, é ficção e o que não é

Comecei a folhear “A vida curta de um fato” só para me ambientar. Há uma pilha de livros anteriores que preciso ler. Mas quando me dei conta, já tinha percorrido um capítulo inteiro e, sinceramente, tinha que saber o quanto antes como a história iria terminar.

“A vida curta de um fato” foi escrito por John D’Agata e Jim Fingal. O primeiro, ensaísta e professor de escrita criativa na Universidade de Iowa. O segundo, foi checador de fatos na revista “The Believer”, onde atuou justamente na checagem de um texto de D’Agata.

O material trata de um caso de suicídio. A vítima, um adolescente chamado Levi Presley, que saltou de um prédio em 2002, em Las Vegas. Apesar de o livro ter uma tragédia como pano de fundo, a discussão que provoca é sobre o que é não ficção e se há limites para liberdade de um autor.

Embora Presley tenha morrido em 2002, o texto de D’Agata só foi publicado em 2010. Entre 2003 e a publicação, ele e o checador tiveram uma longa troca de mensagens porque o autor – que frisa constantemente que não é jornalista – traz construções textuais que nem sempre são fiéis aos fatos da ocorrência. Fingal, por sua vez, questiona minúcias que às vezes soam irrelevantes (como a cor de um veículo ou arredondamento de números).

“A vida curta de um fato”

No jornalismo, o que tentamos fazer (bom, a maioria de nós tenta) é chegar o mais próximo possível da verdade. Para isso, ouvimos fontes, lemos documentos, usamos estatísticas e confirmamos tudo mais de uma vez. As grandes redações têm o cuidado de adotar também o recurso do checador. Esta figura refaz a apuração do repórter para evitar que haja quaisquer equívocos na informação.

É isso que acontece no livro. D’Agata entrega o ensaio sobre a morte de Presley e o editor da revista pede a Fingal que faça seu papel: checar. A princípio, o autor já deixa muito claro que é um ensaio, não uma reportagem. Porém, como o texto trata de fatos, surgem conflitos entre os dois.

Toda a troca de mensagens entre eles é detalhada no livro. No texto que está sendo checado, D’Agata escreve: “A lua apareceu. Apenas pela metade”. Fica evidente que ele tomou uma licença poética para deixar o material mais atraente. Fingal, por sua vez, averiguou que não era verdade. “Também indiquei que essa informação é falsa. Apenas 12% da lua estava visível naquela noite”, questiona.

Se metade da lua apareceu ou apenas 12% é irrelevante para o fato: um garoto cometeu suicídio. Ao mesmo tempo demonstra uma preocupação que é intrínseca aos jornalistas: há uma fonte que corrobore esta informação?

Agradável

O planejamento gráfico do livro, uma coedição entre Arte e Letra e PUCPress, é muito agradável. A capa e a diagramação foram feitas pelo artista Frede Tizzot e a tradução é de Irinêo Baptista Netto, um dos editores do Plural.

Para facilitar a vida de quem lê, a organização textual foi a seguinte: primeiro o texto submetido à checagem em fonte maior, no alto da página. Depois, em negrito, o trecho verificado e o comentário de Fingal. A troca de mensagens vem com o nome do autor antes. Isso funciona bem e deixa a leitura mais fácil para entender quem está falando e o que está sendo questionado.

Curiosidade

Nas redes sociais, a maioria das pessoas tem o (péssimo) hábito de acompanhar discussões que não lhe dizem respeito. Tudo é motivo para “seguir o fio”, como dizem os tuiteiros. Em “A vida curta de um fato”, o que acontece é algo parecido. Como leitora, eu ponderava o tempo todo: de fato, essa informação precisa ser retificada ou, meu Deus, que exagero pedir para alterar um segundo ou uma cor.

Outro ponto positivo é que, depois da discussão, o livro traz a íntegra do texto publicado pela “Believer”, permitindo verificar o que foi alterado e o que foi mantido pelo editor na versão final. “A vida curta de um fato” é uma leitura obrigatória para jornalistas, estudantes de comunicação e aspirantes. E uma leitura muito agradável para quem gosta de uma boa polêmica.

Livro

“A vida curta de um fato”, de John D’Agata e Jim Fingal. Tradução de Irinêo Baptista Netto. PUCPress e Arte e Letra, 268 páginas, R$ 69,90. Jornalismo.

Sobre o/a autor/a

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