Projeto teatral reunindo Alemanha, Angola e Brasil chega à Vila Pantanal

Alunos da Escola Jornalista Arnaldo Alves participaram de produção trinacional

Não foram só atores e alunos que estiveram presentes à apresentação de uma peça teatral na Vila Pantanal, na semana passada. No palco da Escola Jornalista Arnaldo Alves, os estudantes do Alto Boqueirão viram diante de seus olhos a história e a geopolítica. Mais do que ver, participaram da construção do espetáculo “Trade Winds”, uma peça que reúne gente de três continentes em torno de um mesmo projeto.

A peça Trade Winds (Ventos Alísios) é um espetáculo “pós-colonial” que objetiva mostrar às crianças as relações culturais, econômicas e políticas entre os continentes da América, da África e da Europa. O projeto foi construído por artistas e educadores (as) do Brasil, da Angola e da Alemanha, e mostra, de forma lúdica, as desigualdades desenvolvidas durante as rotas comerciais do mercantilismo europeu durante os séculos XVI e XIX.

As apresentações de Trade Winds estrearam em Berlim e seguiram para Luanda e Curitiba. As pesquisas para a produção do projeto ocorreram em parcerias com escolas de bairros periféricos das três cidades, e as crianças e pré-adolescentes puderam participar ativamente das construções.

Em Curitiba, entre os três locais nos quais o espetáculo foi apresentado, está a Escola Jornalista Arnaldo Alves, no Pantanal. Segundo Luzia Lopes, diretora da escola, o projeto teve início em março deste ano, com as primeiras conversas entre proponentes das equipes para depois ser construído com as turmas de 3º ano.

Com seis artistas em cena, sendo dois representando cada um dos países envolvidos, a peça trouxe a relação do atual neoliberalismo com o mercantilismo europeu. Tratou de questões étnico-raciais entre povos brancos, indígenas e negros, das relações econômicas e dos privilégios envolvidos.

Por meio de um teor crítico, as atrizes e os atores em cena provocam as crianças com indagações e afirmações como: “O que é quilombola?” “O que são privilégios?” “Volkswagen é o carro do povo. Eu nunca tive carro”.

Contrapondo os sentimentos de escravidão mostrados na peça, houve momentos de mensagens sobre igualdade: “Ninguém é mais importante que ninguém. Temos que andar juntos.” “Nós andamos iguais.”

Parceria de conhecimento

A organização do projeto considera muito interessante a parceria firmada com a escola da Vila Pantanal por se tratar do trabalho com pessoas que podem saber muito das relações comerciais entre os países. Apesar de não terem um conhecimento formal, vivem esse contexto no dia a dia. Dessa forma, a função de levar o projeto às escolas de periferias ou públicas não é a de ensinar as crianças, mas sim fazer uma troca de conhecimentos e tentar entender como elas vivem.

Segundo a direção da peça, talvez as crianças da escola não saibam o significado formal de “informação”, contudo vivem a complexidade do termo na realidade. Todos os dias estão envoltas em propagandas, filmes, novelas, e tudo isso permeia os meios de comunicação.

Acredita-se que as crianças de alguma forma sentem que há algo defasado no sistema e por isso as suas percepções devem ser levadas em consideração. Para o diretor da peça, Carlos Manuel, “o ator tem que se confrontar, não tem que se transformar”. Por essa razão considera importante estar no Colégio Suíço-Brasileiro, com crianças de classe média, e na Vila Pantanal. “O tipo de confrontação que estamos esperando para mim não faz diferença nenhuma. Se temos um público acadêmico, um público rico ou um público pobre. A peça não muda, o que muda é a relação deles com a peça”, afirma com motivação.

Cláudia Römmelt, diretora do Instituto Goethe de Curitiba, fala que a organização fez questão de apresentar a peça em locais bem diferentes e diversos. A primeira apresentação foi no Departamento de Artes da UFPR, um público adulto e acadêmico. A segunda apresentação foi no Colégio Suíço-
Brasileiro, um outro público. “Nessa escola observamos que não tinha nenhuma pessoa negra. E hoje aqui a plateia é bem mais variada. Então, a gente consegue medir o impacto através do público e como ele nos recebe”, diz.

Cláudia afirma que o grupo foi bem recebido nos lugares que se apresentou; contudo na escola da Vila Pantanal a equipe “sentiu uma sede”, muita vontade das pessoas de fazer uma parceria, pois foi uma oportunidade singular para as crianças. “Não sei se tem como medir, mas a gente percebe o quanto é importante trazer essa abertura para o mundo, para um lugar como aqui, como essa escola”, afirma.

As relações comerciais foram apresentadas de forma lúdica. “A cada apresentação você descobre uma coisa nova. E as crianças, a partir dessa introdução que tiveram com as professoras e a partir do trabalho em conjunto com as escolas dos outros dois países, tiveram com certeza um grande entendimento do que estava acontecendo, do que estava sendo apresentado ali”, diz Cláudia.

Produção do projeto

De acordo com Carlos Manuel, a ideia inicial já era a de fazer um projeto com Angola, Brasil e Alemanha, devido às conexões existentes entre esses países. Na História, o Brasil teve durante 150 anos um papel semelhante à de uma metrópole com relação à Angola, pois foi o parceiro comercial mais importante.

As encenações trazem muitas histórias de pessoas que foram escravizadas e que vieram para o Brasil por meio das relações comerciais.

Trade Winds é um nome inglês, traduzido em português como Ventos Alísios. Carlos Manuel informa que para a interpretação da peça, o termo “alísio” significa “passagem”. E “trade” também se refere a caminho, passagem e comércio. “Eu não gosto muito de usar termos em inglês, mas foi utilizado porque o comércio internacional é feito em inglês. Aquilo que nós chamamos de fenômenos naturais ou forças naturais, no caso aqui “ventos”, não só o nome de uso, que seria o vento da passagem, mas tem a ver com o vento do comércio”, afirma.

A peça se confiqura nesse sentido, o que os seres humanos comumente chamam de natureza, nas performances ganha o nome de natureza. O contexto explora como isso foi se transformando e dando a dimensão a esses acordos e implicações. “Na verdade, aquilo que mais circula no final das contas são as pessoas mesmo, são as informações”, diz o diretor.

Carlos Manuel informa que desde o início, o projeto foi pensado para que tivesse outra visão de como as relações chamadas “comerciais” impactam na vida de crianças. Dessa forma, cada atriz/ator foi a um dos três países para trabalhar com uma escola.

A figurinista Amabilis de Jesus afirma que, diferente do habitual, esteve no projeto desde o início. Ela conta que geralmente as (os) figurinistas chegam depois ou ficam por um tempo determinado, mas sua experiência foi diferente no Trade Winds. “Eu consegui uma licença no meu trabalho, então fui até Berlim, que foi onde o processo todo se iniciou. Então estive com eles o tempo todo. Fomos para Angola, todos juntos e depois para o Brasil e estive sempre junto”, completa.

Para relacionar o figurino com o que a peça precisa transmitir, Amabilis fala que foi feito todo um processo com muita conversa e que teve muita liberdade para a criação. “Eu propus que fôssemos até um mercado que tem em Berlim. É um mercado que tem muitas coisas populares e entendemos que poderia ser algo meio que de lugar nenhum, mas que está relacionado com esse “pop”, que é a mercadoria. Então era mais essa relação, do popular com o mercadológico e a mistura de cores”, informa.

No trabalho para o desenvolvimento da peça de teatro, as crianças foram questionadas sobre quais temas lhes interessavam mais e o que achavam de outros países, como imaginavam aqueles lugares. Também foi integrada na construção do projeto e nas encenações uma moeda do norte da Angola chamada Libongo. Essa moeda era feita com uma nota produzida em tecido de fibra de palmeira entrelaçada e tinha em torno de 10 cm a 20 cm.

A ideia era fazer uma moeda para trocar entre os três países envolvidos no projeto, que não tivesse valor financeiro, contudo um valor afetivo e de informação. A diretora Luzia Lopes afirma que as crianças do 3º ano produziram os libongos, uma construção conjunta para que fossem juntando e formando um tecido único. “É a ideia de estar conectados, de se tocar, de se falar.

Essa necessidade de estar juntos veio muito da pandemia”, diz. Segundo Luzia, mesmo com o desenvolvimento simultâneo da mesma proposta, foi realizada de maneiras diferenciadas. “Eles puderam apreciar e foram apreciados hoje. Durante a criação foi um processo livre, bem tranquilo”.

A coordenadora do projeto na escola, professora Lucimara Ramos Lopes, diz que conheceu a iniciativa por meio das atividades de práticas artísticas da educação integral. Segundo Lucimara, inicialmente a ideia era a de ter um encontro síncrono entre as crianças dos três países, mas não aconteceu por algumas limitações de internet. Então conheceram as crianças da Alemanha e da Angola por meio de vídeos gravados. “Nós aqui gravamos três vídeos. Um vídeo apresentando a comunidade, outro a escola e as crianças se apresentando, falando nome, idade, o que gosta de fazer. E recebemos deles também os vídeos dessa maneira. A diferença é que os nossos são menorzinhos, são crianças menores do que as dos outros países. Os de Angola e de Berlim já são pré-adolescentes, dez, onze anos”, diz.

Lucimara conta que tem um trabalho bem sólido de oficina de teatro, por isso foi convidada e aceitou participar do projeto. Como até o 3º ano as crianças estudam em tempo integral, foram elas o público participante. Para a professora, o projeto significaria uma boa despedida de último ano na escola.

A atriz Cecília Maria e o ator Pedro Ramires foram até a escola no início do projeto para fazer duas oficinas com as crianças. Trabalharam cenas, jogos, montaram partes dos cenários. E nesse trabalho Cecília e Pedro coletaram informações sobre o conhecimento das crianças sobre os três países envolvidos na peça de teatro. Inclusive algumas falas presentes nas encenações são relatos das experiências das próprias crianças.

A professora Lucimara afirma que as crianças conseguem entender a mensagem que é transmitida na peça, porque houve todo o trabalho inicial que foi relatado. Ela conta que quando trabalhou com elas as relações comerciais, partiu das existentes na própria comunidade. “Com a pandemia, muitas famílias aqui passaram a trabalhar com a coleta de material reciclável. Então dentro dessa lógica do reciclar, eu comecei a perguntar para elas: o que vocês fazem? Como que é?”

Dessa forma, as crianças falam sobre todo o processo do trabalho de com reciclados: coleta, separação dos diferentes materiais e os compradores. Então se recebe o dinheiro e faz a entrega do material para ser levada à usina de reciclagem. “Essa circulação do dinheiro, ou seja, ele vende esse material, esse material vai para uma usina, ele vai ser reciclado e de certa forma ele vai acabar sendo consumido por eles mesmos, uma economia circular”, explana Lucimara. As relações comerciais mostradas na peça foi pesquisa das crianças, o que mostra seu interessante nível de compreensão.

Os estandartes que aparecem nas apresentações, são padronizados de acordo com os libongos desenvolvidos, os quais as crianças receberam no final da encenação. Com essa motivação, as apresentações do projeto se encerraram e cada pessoa envolvida retorna para seu país.

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