Erros e desdém da Prefeitura deram fim ao mural “Jack Bobão” em Curitiba

Várias camadas de confusão sobre um dos painéis mais conhecidos de Curitiba revelam como falta à cidade um olhar atento para a arte

Um mural que há quase dez anos fazia parte da paisagem urbana da cidade foi coberto por tinta cinza. A imagem desde 2013 atraía os olhos de quem passava pela lateral do Teatro Guaíra, quase na frente do Guairinha, e reunia técnicas de street art como stencil e grafite para retratar Jack Nicholson, numa referência ao filme “O Iluminado” (1980), com a frase: “Só trabalho sem diversão faz do Jack um bobão”. São tantas as imagens em redes sociais que é difícil apostar em um número exato de fotografias feitas com a arte em primeiro plano ou ao fundo. E é igualmente difícil encarar a confusão que terminou apagando o mural com algumas demãos de tinta cinza. Foi o fim de “Jack Bobão”.

Mancha na imagem

Um dos mais recentes capítulos da saga foi uma tentativa do Prefeito de Curitiba, Rafael Greca (PSD), de apagar qualquer mancha que tenha respingado na imagem de sua gestão. Na sexta-feira (12), houve um encontro marcado às pressas, o resultado divulgado foi algo entre uma explicação e uma proposta com ares de acordo informal. Em sua conta oficial no Instagram, o prefeito disse que a pintura foi apagada por uma falha de comunicação entre o proprietário do edifício e a Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU), informação presente tanto no vídeo com a fala de Greca quanto na legenda do post. 

A matéria publicada no mesmo dia pela agência de notícias da prefeitura, que foi republicada por vários veículos de comunicação locais, acrescenta um dado sobre como a obra de arte foi viabilizada: por meio de “edital do Mecenato do Programa de Apoio e Incentivo à Cultura”. Trocando em miúdos, o dinheiro investido para criar e executar o mural veio de uma ferramenta de responsabilidade da Fundação Cultural de Curitiba. 

Esses dois comunicados ainda falam que o autor do “Jack Bobão” aceitou o convite do prefeito para fazer um novo mural, ou até vários. A atitude nobre, além de não resolver a situação futura de muitas outras intervenções de street art que moram em Curitiba, pode ter sido erroneamente endereçada apenas ao artista localizado mais rapidamente para jogar água no incêndio. Talvez, aguarrás. 

Autor da obra

O mural apagado tem como autor Eduardo Melo, conhecido como Artestenciva, e não Celestino Dimas – que conversou e aceitou o convite de Greca. Dimas foi o proponente e idealizador de um projeto, chamado “Motion Layers”, que compreendia três artes de grandes proporções pintadas em prédios de Curitiba. Contudo, cada uma teve seu próprio autor. Além de “Jack Bobão” criado por Artestenciva, “Ray” (na Rua Marechal Deodoro) foi assinado por Leandro “Cinico”, e o “Romy & Woody” (ao lado da Biblioteca Pública) é de Dimas. Este último, entre os três painéis, acabou sendo produzido de maneira independente.

Eduardo Melo estava evitando se envolver na polêmica ao redor da pintura, porém o assunto se espalhou com o crédito da obra errado. Resolveu reivindicar o que lhe é de direito – a autoria do mural – porque as pessoas estavam olhando para esse fato como uma questão que se encerra sobre o painel e a cidade, apenas pertinente aos artistas enquanto grupo. “Mas é sobre a autoria de um artista, acho importante isso ser frisado agora para depois ver aonde essa discussão vai”, diz ele.

Para o autor, o apagamento do mural foi o fechamento do ciclo de uma obra de arte de rua. Por enquanto, não decidiu se aceitaria convites futuros do prefeito, certo é que não faria a mesma obra. “Eu tenho uma evolução na minha arte, uma evolução na minha vida, tudo isso vai agregando. Tenho valor artisticamente e estou no mercado, isso vai levantando outras questões para mim”, explica Melo.

O prédio

A decisão de passar algumas demãos de tinta sobre a imagem na parede não foi tomada por falta de apreço à arte, conforme contou ao Plural o síndico Moacir Stelzner, do Edifício Inter Walter Sprengel. Foram as notificações e multas aplicadas pela Secretaria Municipal de Urbanismo – SMU que determinaram o destino da ilustração que morava ali.

“Eles [SMU] nunca falaram que a gente precisava ter um alvará, só vinham e deixavam a notificação”, Sprengel fala para explicar a situação que já se arrastava antes dele assumir o cargo. Em abril, depois de recorrer e ter o pedido indeferido, o prédio pagou uma multa de cerca de R$ 1.200 (mais os valores cobrados pelo advogado). Pouco tempo depois, em junho, outra notificação chegou dando prazo de dez dias para retirar a pintura artística instalada na empena cega do imóvel. A dor de cabeça e os custos gerados pela manutenção do mural pareciam não ter fim, então a saída foi pagar cerca de R$ 20 mil para pintar a parede e resolver o problema. “A gente não queria tirar”, diz o síndico visivelmente constrangido. 

A Fundação Cultural

O Plural teve acesso a duas dessas notificações e também a um parecer obtido junto à Fundação Cultural de Curitiba (FCC), em uma consulta sobre o que poderia ser feito, pois os responsáveis pelo imóvel tinham receio, afinal o mural era um projeto endossado por esse órgão da prefeitura. Assinado em setembro pela presidente atual da FCC, Ana Cristina de Castro, o texto classifica a obra como de caráter temporário e leva em conta a autorização do condomínio concedida na época da execução do projeto, com permanência mínima, estabelecida em 12 meses, já expirada. O gran finale é: “esclarecemos que a pintura pode ser removida”. 

Poder, podia; mas talvez não devesse. Ao que tudo indica, a FCC não considerou discutir com outro órgão, da mesma prefeitura, sobre a situação de um dos murais mais icônicos de Curitiba, ou mesmo orientar e conversar mais com o pessoal do edifício. Talvez o “Jack Bobão” não seja um tema caro à Fundação, pois ela também não respondeu às perguntas desta reportagem sobre os documentos solicitados para a aprovação do projeto e sobre a obrigatoriedade de alvará do setor de urbanismo para a execução de obras de arte visual na cidade, nem se foi informada da situação ou notificada pela SMU. Também não houve resposta se existem iniciativas da Fundação para a manutenção de intervenções de street art em Curitiba. 

A Lei e a Secretaria Municipal de Urbanismo

Segundo a assessoria de imprensa da SMU, “a Lei 8471/1994 estabelece que a instalação de publicidade e arte urbana (pinturas artísticas e grafites) ao ar livre em Curitiba requer obrigatoriamente alvará prévio emitido pela Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura de Curitiba”. 

A lei citada “dispõe sobre a publicidade ao ar livre” na cidade e, conforme definido no Art. 2, essa é a publicidade “veiculada por meio de letreiros ou anúncios visíveis ao público”. O primeiro parágrafo do Art. 2 define letreiros como “indicações colocadas no próprio local onde a atividade é exercida, desde que contenham apenas o nome do estabelecimento, a marca ou logotipo, a atividade principal, endereço e telefone”; o segundo considera anúncios como “indicações de referência a produtos, serviços ou atividades por meio de placas, cartazes, painéis ou similares instalados em locais estranhos, onde a atividade é exercida.”

Não existe citação ao termo “arte” no texto original da Lei nº 8471/1994. Questionada sobre por que o mural foi enquadrado nessa lei, sendo que não apresentava as características que definem “publicidade ao ar livre”, a SMU não respondeu. 

Em pesquisa para essa reportagem, a equipe do Plural encontrou, no Decreto n.º 402/2014 que regulamenta a lei citada pela SMU, uma única referência a pinturas artísticas. Esse decreto diz em seu Art. 13: “A critério do Conselho Municipal de Urbanismo – CMU poderá ser permitida publicidade, quando houver: (…) VII – a pintura artística em muros, viadutos, pontes, trincheiras e empenas cegas, devendo ser previamente ouvidos os órgãos competentes”.

Apesar de explicar os passos para a emissão do alvará, a secretaria não esclareceu se havia conhecimento de que o mural era resultado de projeto do mecenato, regido pela FCC. Também não respondeu se existem iniciativas dos órgãos para a manutenção de obras de arte de rua ou se outros prédios da cidade com murais foram notificados.

Outros murais estão em risco?

O Plural entrou em contato com os responsáveis pelos imóveis onde estão os ‘irmãos’ de “Jack Bobão” e descobriu que  Nem “Ray” nem “Romy & Woody” foram notificados até hoje. Na vizinhança de “Ray”, ainda existe um outro mural que atrai os olhos mais ou menos observadores. A pintura gigante da dupla de artistas Bicicleta sem Freio, produzida pelo Mucha Tinta, está no 686 da Marechal Deodoro; e os responsáveis pelo imóvel, também não foram notificados. Pelo menos, não ainda.

Contudo, a produtora cultural à frente do Mucha Tinta, Giusy de Luca, conta que o mural “Cosmic Boys” (Antigo Cine Condor, na rua Cruz Machado, esquina com Ébano Pereira) –  aprovado via mecenato subsidiado e assinado pelos artistas Rimon Guimarães, Ramon Martins e Zeh Palito – passou por problemas em 2017. “Fomos autuados pela Secretaria de Patrimônio Cultural e pelo Urbanismo, e denunciados para o Ministério Público por intervir próximo à área tombada e por não ter um alvará infundado de instalação de ‘propaganda'”, diz de Luca. Para resolver o caso, foi preciso o suporte do escritório de advocacia e de artes da UFPR, e da própria Fundação Cultural de Curitiba. 

Ela ainda explica que os editais ligados a leis de fomento à cultura no estado e no município exigem em média 20 documentos entre solicitações, laudos e liberações. “Toda vez, quando tentamos o alvará na Secretaria de Urbanismo, o processo acontece de forma morosa (em torno de um ano para a liberação sair) depois de muito diálogo”, fala a produtora.

Representatividade e paridade de armas

Fora do campo das burocracias cotidianas, o curador, crítico e colecionador de arte Benedito Costa (e colunista do Plural) aponta que o apagamento do “Jack Bobão” envolve aspectos não tão óbvios. Um exemplo é o paralelo entre o que ocorreu agora em Curitiba e o que houve em São Paulo, quando o prefeito João Doria (PSDB) apagou grafites famosos da cidade. “Queira ele [Greca] ou não, queira eu ou não, queira você ou não, assim como o Beco do Batman já era um ponto de atração na cidade de São Paulo, aquele grafite aqui em Curitiba também era”, diz Costa. 

Mesmo com as últimas mudanças nas legislações, que retratam a nova visão das duas capitais sobre poluição visual, a dúvida recai sobre por que foi apagado da paisagem esse mural em especial e não outras obras. Segundo o crítico, a explicação é quase uma ironia: o prefeito paulistano é casado com uma artista plástica e o curitibano é um colecionador de arte. 

Costa explica a falta de paridade de armas e até de lógica na situação, levantando questionamentos hipotéticos sobre a motivação que impede que se tire um Poty das ruas da cidade, ou outros painéis que fazem parte da arquitetura comum aos prédios dos anos 1960. “É como se aquele trabalho [“Jack Bobão”], feito por um artista, não tivesse relevância, mas painéis instalados em outros prédios têm. Não há um desejo de igualdade, não há um desejo de equalização entre os discursos artísticos. O Greca tem um gosto muito peculiar, ele só vai defender o que lhe interessa”.

Sobre o/a autor/a

12 comentários em “Erros e desdém da Prefeitura deram fim ao mural “Jack Bobão” em Curitiba”

  1. Lamentável, espero que esse “engano” não se estenda aos outros murais da cidade, todos lindos. A arte de rua tem que ser valorizada e exaltada, não apagada.

  2. Sabemos que a arte liga os pontos, liga a consciência. Quando você lê, na sua cara, no centro de uma cidade conservadora e classista como é esta, que ” o cara que trabalha e não se diverte é um bobão”, alguém do patronato, da elite da cidade não vai gostar, por que isso remete ao direito do trabalhador de também se divertir, descansar, enfim, trata dos direitos das classes trabalhadoras, que servem aos ricos. Foram os ricos que exigiram a retirada, é óbvio. Greca, sendo um deles…..

  3. Alfredo Moreira Lopes

    QUE PENA NÉ ?!? Esse painel do “Jack Bobão” e o painel do “Ray Charles”, pintado na rua Marechal Deodoro são ícones artísticos da cidade, foram estrategicamente pintados pela área do seu entorno ter um viés cultural muito expressivo; a pintura do “Jack Bobão” próxima do Teatro Guaíra e o painel do “Ray Charles” próximo do teatro da Caixa, pouca gente sabe ou faz essa correlação de interesse artístico e cultural deveriam ser eternizadas por repinturas do seu autor. O artista, pintor e grafiteiro Celestino Dimas tem inúmeras intervenções pela cidade, é um batalhador numa arte que foi marginalizada até o seu reconhecimento como expressão artística há pouco tempo atrás. O grafite ou a pintura em mural humaniza a cidade escondendo o cinza ou as pinturas impregnadas pela fuligem e poluição das grandes cidades. Ele (o Celestino Dimas) é o autor do mural pintado no prédio ao lado da Biblioteca Pública. Esse mural gigante remete a uma cena do filme “O que é que há, Gatinha ?”, produzido, dirigido e protagonizado pelo Woody Allen em 1965. Replico abaixo a íntegra do texto extraído do informativo “Bem Paraná” sobre essa pintura: “A arquitetura modernista do prédio histórico da Biblioteca Pública do Paraná ganhou um novo elemento. Um painel de 12 metros de altura por 10 metros de largura foi pintado pelo artista curitibano Celestino Dimas na lateral direita da BPP, na rua Ébano Pereira. O desenho, realizado a partir da técnica do estêncil com projeção, retrata uma cena do filme O que é que há, Gatinha? (1965), em que o cineasta Woody Allen beija a atriz Romy Schneider dentro de uma biblioteca. Na cena retratada, os dois se equilibram em escadas em frente a livros enquanto se beijam.” Esse mural levou quase 03 anos para ser concluído pelas idas e vindas do autor na busca por patrocínios que bancassem a tinta utilizada, que não foi pouca e demais despesas estruturais para a viabilização dessa obra. Por fim, em 2018, com a ajuda financeira da Biblioteca Pública e da Fundação Cultural de Curitiba o painel foi concluído. Fiz essa explanação pra podermos dimensionar que grafites ou murais desse tamanho levam tempo para serem concluídos e demandam grande esforço e energia do artista, que rema, na maioria das vezes, contra a forte maré. E aí, por uma questão burocrática perfeitamente contornável, acinzenta-se essa verdadeira obra de arte, que hoje passa a fazer parte do imaginário de quem a apreciava. Pra ver que uma cidade como Curitiba, que tenta passar a impressão de “cidade sorriso”, “capital ecológica” ou “centro de cultura e arte” sucumbe à vil burocracia de quem não entende nada de arte ou não tem essa sensibilidade. Do nada perdemos mais um significativo painel que traduzia essencialmente a arte de rua. Uma pena…

  4. e a “pintura” dos @osgemeos junto ao MON tem Alvará para estar lá? já não basta a “afronta” a uma obra de arte da arquitetura mundial, dois pesos e duas medidas, uma obra legítima e autorizada pelos proprietários sendo multada, enquanto outra que “profana” uma obra de arte arquitetônica….

  5. MARCELO FERNANDO DE LIMA

    Se o mural tivesse um pinhão, uma gralha azul, ou o “magnífico Rio Barigui”, provavelmente seria mantido pelo alcaide Rafael El Greca III.

  6. Há que se perguntar porque é que Ana Cristina de Castro está na presidência da FCC. Novamente a instituição com obscuridades envolvendo o acervo de artes visuais, obscuridades que remontam de longa, longa data, de décadas.
    Esse povo é desrespeitoso e MUITO MAIS no trato com o acervo histórico, artístico e cultural da cidade.

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