Por que (ainda) ler Nietzsche?

O filósofo "explosivo" deve ser lido pelo gosto de liberdade que nos deixa no paladar

Poucos autores foram tão polêmicos, criticados e temidos quanto o alemão Friedrich Nietzsche. Ele mesmo, não por acaso, definiu-se como uma dinamite. Seus escritos despertaram iras e amores de todos os lados, o que, em boa parte, contribuiu para a sua fama e para a curiosidade que seus escritos despertaram dentro e fora da academia.

Legiões de leitores/as de Nietzsche espalharam-se pelos seis continentes e fizeram com que seu pensamento se tornasse uma das grandes potências ao longo do século XX e XXI, tendo influenciado diferentes pensadores, escritores, pintores, cineastas e inúmeros agentes culturais. Nietzsche é mesmo uma febre. Mesmo quem o detesta mantém seus livros na estante, como para fisgar aqui e ali, um pouco da leveza, da coragem e da acidez de suas ideias e de seu estilo.

Seus livros são verdadeiros eventos: o primeiro deles, lançado em 1872, O nascimento da tragédia, ficou famoso pela análise metafórica dos impulsos artísticos a partir de dois deuses gregos, Apolo e Dionísio. Em 1878, quando celebrava-se os cem anos da morte de Voltaire, Nietzsche (que adorava a França e os franceses), dedicou-lhe o seu Humano, demasiado humano, obra que fundou uma “escola da suspeita” contra Schopenhauer, Richard Wagner e boa parte dos alemães e dos filósofos anteriores; seguiu-se a ele “Aurora” (1881) e depois “A gaia ciência” (1882), livro no qual ele deu a lume um dos seus conceitos mais provocativos: a morte de Deus.

Trazida pela boca de um louco, cuja lanterna simbolizava a luz da razão, essa notícia traduzia um diagnóstico: a crise sem precedentes que abalava a cultura ocidental, o fim de todas as referências, das verdades absolutas, dos valores supremos e das cláusulas pétreas da civilização.

Questionando o modo de pensar baseado na razão que, segundo ele, teria descartado o maior tesouro do ser humano, o seu próprio corpo, Nietzsche escreveu de forma aforismática e poética. Sua obra mais conhecida, não por acaso é um livro de filosofia escrito em forma poética: “Assim falou Zaratustra” deu vazão ao seu talento implacável na forma de um livro que ele mesmo descreveu como tendo sido escrito com sangue (tão cheio de experiências vitais).

A obra, que invertia a lógica do profeta fundador do zoroastrismo (uma das primeiras religiões a pensar a existência de uma divindade para o bem e outra para o mal, fundando com isso o dualismo no âmbito da moral), foi escrita como uma sinfonia, dada a leveza do estilo e a intensidade das ideias.

Embora não tenha desenvolvido de forma teórica nenhum dos seus conceitos, Zaratustra apresenta muitos dos temas que fizeram a fama de seu autor: o eterno retorno, o niilismo, a vontade de poder, o amor fati (amor ao destino) e a transvaloração dos valores.
Dada a fama e a fácil disponibilidade do livro, já vi muito leitor desavisado fechá-lo na oitava linha, recusando as ideias ou – o que é mais comum – sentindo-se incapaz de alcançá-las adequadamente.

O livro é mesmo “para todos e para ninguém”, como se lê no seu subtítulo. Suas ideias, contudo, continuaram sendo elaboradas em obras como “Para além de bem e mal”, “Para a genealogia da moral”, “O crepúsculo dos ídolos”, “O anticristo” e o não menos enigmático “Ecce Homo”, um livro no qual o filósofo reflete sobre sua própria produção bio-bibliográfica.

Nem mesmo o golpe de sua irmã, Elizabeth, que o associou ao nazismo com as bênçãos do próprio Führer, foi suficiente para obscurecer a sua herança. O nome Nietzsche sobreviveu até mesmo à publicação de um livro falsificado, “A vontade de poder” – história só desvendada na década de 1970, com a publicação de sua obra crítica completa.

Por essas e outras Nietzsche continua sendo um filósofo central para a compreensão de nosso mundo. Poucos como ele decifraram as raízes mais arcanas de nossa cultura, suas doenças, suas mentiras e todas as contradições que foram fabricadas em estranhas oficinas, cujos ares irrespiráveis, Nietzsche mesmo frequentou para voltar à luz e contar a todos.

O drama de sua vida é quase o drama de nossa própria civilização, o que explica porque, mesmo falando em nome próprio, o que Nietzsche diz inspira a todos nós. Ainda hoje as lufadas de ar puro de seus pensamentos podem ser sentidos no âmbito da moral, da religião, da política, da arte e da filosofia. Nietzsche, por isso, é um sismógrafo do Ocidente e um dos autores mais férteis e profícuos, cujas provocações são inesgotáveis para todos que querem conquistar a liberdade de espírito por meio de uma autoafirmação de si mesmo.

É por isso que ele deve continuar sendo lido: por um gosto de liberdade que ele nos deixa no paladar.

Texto publicado como parte das comemorações dos 50 anos do Goethe-Institut em Curitiba.

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