Livro de historiador da UFPR revela lado escravista de político do Império

Carlos Lima lança estudo sobre a vida e as ideias de Nicolau Vergueiro, um dos membros da primeira regência trina e escravista renitente

O nome de Nicolau Vergueiro aparece muito de passagem na maior parte dos livros didáticos, como integrante de uma das regências trinas do Império. No entanto, como se pode imaginar, para alguém chegar a ser um dos governantes do país, é preciso ter passado por muita coisa. E é preciso ter defendido pautas políticas que eram fundamentais na ocasião.

O historiador Carlos Lima, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), especializado em século 19 e na história da escravidão no Brasil, decidiu ir a fundo na biografia de Vergueiro. Saiu de sua pesquisa com um livro que agora sai pela Editora da UFPR com o título “Por um rosário de penitenciárias. Ideário político de Nicolau Vergueiro, bacharel, parlamentar, fazendeiro e negociante de grosso trato (1811-1859).”

Um dos responsáveis por criar a política de importação de mão de obra europeia, Vergueiro – conta Carlos Lima – foi um escravista renitente, que não só tinha mais de 200 escravizados em suas fazendas e engenhos como pode ter sido até mesmo traficante de africanos num período em que isso já era ilegal.

Em entrevista ao Plural sobre o livro, Carlos Lima disse que se interessou pela história de Vergueiro em parte por se tratar de um “escravista tagarela”, que defendia às claras o uso de mão de obra escravizada. Leia a conversa na íntegra.

Por que vale a pena contar a história do Nicolau Vergueiro?
Vergueiro teve papel importante na Independência; foi deputado às Cortes portuguesas de 1821 e constituinte em 1823. Foi um longevo senador. Embora nascido em 1778, em Portugal, tornou-se um ativo e falante senador em 1828 e permaneceu nessa posição até sua morte, em 1859. Manteve mobilização intensa contra D. Pedro I, até que este abdicou em 1831. Logo em seguida, compôs a Regência Trina Provisória, no mesmo ano de 1831, além de ter se tornado ministro do Império (isto é, ministro do interior, mantendo responsabilidades ligadas à preservação/estabelecimento do tecido social, da educação às eleições e do governo da cidade do Rio de Janeiro até a colonização, os indígenas e os assuntos agrários).

Quanto a açúcar, ele foi o proprietário de um engenho importante em São Paulo, a fazenda Ibicaba. Em relação ao café, ele importa por ser considerado um dos principais introdutores de mudas de cafeeiros no Oeste Paulista até então canavieiro (Campinas, Piracicaba, Limeira, Rio Claro). Foi um grande proprietário de escravos (mais de 200 nos anos 1840) e há bons indícios de que foi traficante de escravizados, inclusive durante a época dos contrabandos, isto é, na época em que o tráfico africano estava proibido mas foi realizado ainda assim (1831-1850), além de ter sido pioneiro na importação de imigrantes (apesar de ter feito isso de uma maneira que não se mostrou sustentável).

Quando se estudam problemas agrários no passado brasileiro, ele importa porque, segundo o que ele mesmo dizia, teria sido o proponente da suspensão da concessão de sesmarias no Brasil, além de ter formulado os primeiros projetos daquilo que viria a ser a Lei de Terras de 1850.

Estudar Vergueiro importa em virtude daquilo que os historiadores chamam de projeto civilizador. Ele era um reformador de comportamentos, mas pensava que isso não era tarefa do Estado, mas sim dos fazendeiros. O livro se chama “Por um rosário de penitenciárias” porque o Brasil que ele tinha na cabeça era um enorme arquipélago juntando ilhas dominadas ferreamente, cada uma delas, por fazendeiros tremendamente poderosos e, julgava ele, ilustrados, no sentido de iluministas. Assim, o projeto vergueiriano foi uma das formulações explícitas do que depois seria chamado de modernização conservadora. Não diria que seu projeto tenha sido vencedor, pois as versões menos fazendeiras e mais estatizantes tiveram preponderância, em benefício das próprias fazendas. Mas foi muito característico.

Como o senhor chegou ao Vergueiro como personagem?
Cheguei até o Vergueiro por várias razões. Queria estudar as ideias políticas de senhores de escravos, e ele foi um escravista bastante tagarela. Tinha passado anos estudando a maneira como o tráfico de escravos africanos era visto e justificado por seus participantes, e Vergueiro foi um traficante muito falante.

Houve também uma outra questão. Já tinha interesse em uma questão sobre a construção do Estado no Brasil: de que forma a sociedade era vista pelos construtores de instituições? Eles a viam como muito dividida entre civilizados e bárbaros, como se estivesse todo mundo errado e como se o Estado a ser construído devesse ser reformador desde sempre? Ou eles achavam que a vida social já continha formas de ligação estáveis e reguladas entre os agentes que a construção do Estado poderia apenas mobilizar, ao invés de ter que construí-las? Isso tem a ver com a ideia de que a escravidão foi um obstáculo à construção do Estado moderno. Mesmo inexistindo contradição entre escravidão e capitalismo, existia, sim, a meu ver, contradição entre escravidão e Estado moderno.

O senador Nicolau Campos Vergueiro

O abolicionista de elite Joaquim Nabuco percebeu isso. Escreveu que o fundamento da liberdade é a regra segundo a qual “o que não é proibido é permitido”, pois isso é algo profundamente ligado à vigência de um contrato social; mas acrescentou que, no Brasil escravista, os senhores de escravos podiam tudo (matar, agredir, sequestrar, estuprar etc.), de modo que “sob a escravidão tudo era permitido” e, assim, não havia liberdade para ninguém. Nem para as pessoas que não fossem classificadas como escravas.

Outro motivo que me levou a Vergueiro foi o fato de que eu vinha escrevendo sobre escravidão e agricultura no Paraná, e o negócio de tropas vinculava demais o Paraná com o que os historiadores chamam de Oeste Paulista (essa área fica no centro-leste do estado, mas a Oeste da cidade de São Paulo – exemplos: Campinas, Piracicaba, Itu etc.), onde Vergueiro foi, durante a primeira metade do século XIX, um dos principais fazendeiros. O caminho das tropas foi aberto em função do ouro de Minas Gerais no início do século XVIII. Mas essa atividade só ganhou dimensões realmente importantes no final do século XVIII, em função da expansão da lavoura canavieira no Oeste Paulista, sendo que essa lavoura, por volta da metade do século XIX, foi substituída pela lavoura cafeeira. Vergueiro foi um exemplo importante de senhor de engenho paulista (ele também gostava de dizer que foi ele quem divulgou entre os fazendeiros do Oeste as mudas de cafeeiro, incentivando a substituição).

Além do mais, Vergueiro era uma espécie de financiador das atividades do negócio de tropas. Ele chegou a propor a criação de uma espécie de banco na Assembleia provincial paulista para agilizar esse financiamento (nessa época, ele era ao mesmo tempo senador no Rio de Janeiro, deputado na Assembleia Legislativa de São Paulo – e presidente da Assembleia – e diretor da Faculdade de Direito de São Paulo, além de fazendeiro, traficante, comerciante, prestamista e agenciador do trânsito de imigrantes; pelo menos a advocacia que o trouxera ao Brasil na década de 1800 ele parece ter interrompido).

Houve mais motivos: queria estudar as ideias de algum senhor de engenho que fosse bem falante. Havia passado uns seis ou sete anos buscando compreender a ligação entre o tráfico de escravos e a mortalidade. Entre 1501 e 1825, o número de mulheres africanas sequestradas e trazidas para o Brasil deve ter sido de mais ou menos um milhão e meio. Ainda assim, a população escrava total do Brasil em 1819 provavelmente foi de um milhão e cem mil pessoas de todos os gêneros e idades. Isso significa que africanos eram sequestrados e trazidos para o Brasil basicamente para morrerem. Minhas tentativas de aproximar tráfico e mortalidade me conduziram a refletir e pesquisar sobre a lavoura canavieira, pois é mais certo dizer que açúcar comia gente do que dizer que gente come açúcar. A mistura de insalubridade e violência imperante no mundo da cana acabou por concentrar minha atenção. Embora o nome de Vergueiro tenha se ligado ao café na memória histórica, ele foi senhor de engenho por vários anos antes de começar a produzir café. Eu queria ler discursos de um senhor de engenho.

Tráfico negreiro: proibido desde 1831, continuou ocorrendo por muitos anos ainda

Ele teve de fato um papel no início da vinda dos imigrantes?
Sim. Primeiro trouxe portugueses das ilhas atlânticas (açorianos). Depois montou uma espécie de companhia para agenciar a migração de europeus continentais.

O sistema utilizado foi o da parceria, que criava muitos problemas no relacionamento entre imigrantes e fazendeiro, e acabou sendo abandonado após conflitos de grande importância.

Alguns analistas sugerem que Vergueiro lidava com os imigrantes muito governado por uma espécie de mentalidade escravocrata.

O que a história dele mostra sobre essa relação entre imigração e fim da escravidão?
Não foi isso o que pesquisei, mas me lembrei, enquanto estudava as ideias de Vergueiro, de uma coisa que foi escrita certa vez por Luiz Felipe de Alencastro. Ele disse que tanto sob a escravidão dependente do tráfico africano, quanto sob os sistemas baseados na imigração europeia (isto é, desde Cabral até o período entre as duas guerras mundiais do século XX, quando a imigração declinou), o que se passava no Brasil era que o essencial do trabalho era obtido através da chegada de trabalhadores prontos e adultos. Os trabalhadores não precisavam ser formados aqui, o que implicaria cuidar das crianças, construindo escolas, providenciando cuidados pediátricos, propiciando água limpa para ninguém morrer de disenteria. Não precisava de nada disso, porque escravos africanos já chegavam em idade de trabalhar, do mesmo modo que os imigrantes europeus do final do século XIX em São Paulo. Era como se a sociedade não precisasse de crianças para funcionar. Aliás, não precisava mesmo, e por isso não se equipava para cuidar delas. No Paraná foi um pouco diferente. Era meio diverso frente a São Paulo. Os imigrantes europeus dirigidos para São Paulo tinham a função de trabalhar na grande lavoura cafeeira, ao passo que os imigrantes dirigidos para o Sul tinham mais a função de formar colônias para fechar a fronteira agrária. Mas também não havia muitos sinais de grande preocupação com a formação de trabalhadores (crianças).

O senhor diz que no dezenove é raro achar alguém da elite que não fosse escravidão. Por que isso acontecia?
Todas as atividades econômicas eram marcadas pela escravidão. Logo, as elites de todas as ocupações eram elites escravistas. Sabemos que as elites canavieiras, cafeeiras e mineradoras eram escravistas. Sabemos que os grandes negociantes e mesmo financistas tinham relação com a escravidão (inclusive Mauá) porque em algum momento eles haviam sido traficantes de escravos. Descobrimos mais recentemente que a pecuária e a agricultura de abastecimento eram escravistas. Havia agricultura camponesa de abastecimento, mas o topo dessa atividade abastecedora era escravista, e isso às vezes chegava a descer na escada social. Me recordo de ter lido em algum daqueles ótimos livros do Érico Veríssimo que o pai da Ana Terra, personagem que tocava um sítio com trabalho familiar, teria comprado um ou dois escravos para ajudar os filhos. Há muitos anos, pesquisei artesãos na cidade do Rio de Janeiro no fim do século XVIII (sapateiros, alfaiates, pedreiros, marceneiros etc.); a esmagadora maioria era bem empobrecida, mas alguns artesãos conseguiam fazer fortuna, e isso enchia o mundo dos ofícios de escravos artesãos. Todas as elites – e mesmo alguns grupos que não eram de elite – consagravam suas posições com a posse de escravos. As raízes disso eram duas: primeiro, escassez de trabalho diante de tanta terra e tantos recursos, obrigando quem quisesse ganhar dinheiro a escravizar alguém (o Brasil na época da Independência era mais ou menos do mesmo tamanho de hoje – o território mudou muito pouco de lá para cá –, mas tinha menos de 5 milhões de habitantes); em segundo lugar, a espoliação da África fazia com que os escravizados fossem baratos e acessíveis no Brasil (é preciso definir: escravizados eram baratos porque o preço para adquiri-los era pequeno em comparação com o preço dos produtos de seu trabalho; escravizados “se pagavam” rapidamente); a África Subsaariana era muito difícil em termos ambientais, o que multiplicava crises, fomes e guerras (além do mais estimuladas por traficantes) e direcionava levas e levas de pessoas para as embarcações do tráfico, a preços baixos.

Imigração italiana: movimento ganhou tração no Paraná na década de 1880

Até que ponto a imigração de europeus pobres de fato mudou o cenário da escravidão no Paraná?
A imigração de europeus pobres só foi realmente maciça depois que a escravidão perdeu importância no Paraná. Em Curitiba, os escravizados compuseram uma parcela muito grande da população no final do século XVIII. A partir do início do século XIX, escravizados ficaram fortemente concentrados nas fazendas agropastoris ligadas ao comércio de tropas, mas sua participação na população diminuiu bastante em relação à do século XVIII. Pela altura da Guerra do Paraguai (1865-1870), o negócio de tropas passou a perder rapidamente sua importância e o tráfico africano já tinha sido interrompido efetivamente, em 1850. Assim, escravizados passaram a ser vendidos para o Sudeste, pois os cafeicultores ainda pagavam um bom dinheiro por eles. A imigração só ganhou tração efetivamente na década de 1880. Havia colônias de imigrantes desde meados do século, mas os números só se tornaram impactantes nos anos oitenta.

Houve um outro tipo de relacionamento, ainda hoje mal conhecido. Estudos de Leonardo Marques mostraram que, entre 1870 e 1950, foi forte a tendência da população afrodescendente do Paraná a migrar internamente, partindo de áreas onde havia sido forte a presença escravizada (o eixo Castro-Ponta Grossa-Curitiba-Lapa) e enraizando-se cada vez mais longe, em localidades agrárias de fronteira. Resumindo, sob a escravidão, negros no Paraná se concentravam nas partes centrais; mas, após a abolição, as migrações levaram os afrodescendentes paranaenses para as margens, para longe de Curitiba, para a fronteira agrária. A gente deve sempre lembrar de que, antes do êxodo rural (iniciado por volta de 1950), houve uma “marcha para o Oeste”, de sentido inverso.

Vergueiro, no século XIX, chegou a perceber o início dessa marcha para o Oeste. Foi um dos motivos pelos quais tentou legislar sobre a terra.

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