Caminhos do Blues, parte final: New Orleans e o dia em que Spike Lee jantou ao nosso lado

Antes de partir para o México, fui conhecer o lugar onde o jazz começou

A última pernada da viagem do blues foi na Louisiana. Saímos de Greenville em direção a Lafayette. Neste meio tempo, após mais uma indicação como finalista do Jabuti, o tio Tovo recebia mensagens de WhatsApp de amigos, congratulando o feito. Às vezes eu precisei chamar a atenção do romancista, então mergulhado na tela do celular, porque tinha coisa na estrada para ver e fotografar – agora era a hora do fotógrafo.

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Lafayette foi um destino não previsto no roteiro original. Eu achava que as cidades pequenas do interior do Mississipi (Clarksdale, Indianola, Tutwiler) renderiam mais, mas tudo podia ser visto em menos de um dia. Para aproveitar o tempo ganho, partimos para Lafayette e antecipamos New Orleans.

O romancista tira fotos da arquitetura de New Orleans. Foto: André Tezza

Lafayette é uma espécie de capital do mundo Cajun. Ela foi fundada por imigrantes canadenses da região da Acádia e a língua original é um dialeto do francês. Há uma cultura própria, com música e comidas típicas. Passamos o dia na estrada até chegar em Lafayette e aportamos somente à noite no camping municipal. Não havia ninguém no escritório da entrada. Por sorte, um jovem estava de saída e nos passou o código do portão automático, bem como nos deu as instruções para fazer o self check-in – bastava colocar os dados de cartão de crédito no envelope disponível na portaria e deixá-lo na caixa de correios. Canadá e Estados Unidos têm uma cultura de confiança entre as pessoas que é espantosa para quem vem do Brasil.

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Janta feita, a cervejada e as gargalhadas foram noite adentro. No dia seguinte, após o banho do tio Tovo, pela primeira vez o tanque de água servida do Paçoca (o tanque das águas das pias e do chuveiro) ficou lotado. Soubemos disso porque a água do box empoçou. Para a nossa sorte, o camping tinha uma dump station, a estação de esgoto para esvaziar os tanques dos motorhomes. Fiz toda a operação no momento da partida, com os olhos atentos do tio Tovo – como ele mesmo disse, é tudo muito bem bolado. Como já estou fazendo isso há meses, consigo deixar tudo pronto em uns 15 ou 20 minutos.

Então, partiu para o mundo Cajun. Mas foi uma saída meio tensa para mim. Diferentemente de outras cidades americanas, Lafayette tem ruas estreitas, a poda das árvores nem sempre é suficiente para a altura do Paçoca e não havia rua sem parquímetros. Depois de muitas voltas, acabamos parando ao lado da igreja – uma das atrações da cidade – pagando o espaço de duas vagas. Depois de uma multa de U$100 que levei em Nashville, fico tenso e já não sei mais direito o que pode ou não nos estacionamentos dos EUA. A igreja era bonitinha, mas nada comparado com as igrejas europeias ou do barroco latino-americano.

Brass Band da Second Line. Foto: André Tezza

Após o almoço, estrada novamente, agora para o destino mais épico da epopeia do blues: New Orleans. Quem nos recebeu foi Idelber Avelar, professor de literatura latino-americana da Universidade de Tulane. Mesmo sem conhecer pessoalmente o tio Tovo, soube que estávamos na região e fez muita questão que ficássemos na casa dele. Idelber nos recebeu com cerveja (tinha até umas de monges trapistas que fizeram o tio Tovo arregalar os olhos), comida na geladeira (deveríamos ficar à vontade) e nos deixou a chave de casa. A ideia é que a gente fizesse os nossos próprios planos, sem se preocupar com a rotina dele na universidade. Idelber comentou que conheceríamos Chris Dunn, um brasilianista importante, também da Universidade de Tulane, especialista no tropicalismo e amigo do Tom Zé. O único defeito do Chris, segundo o Idelber, era gostar do Glauber Rocha – isto provocou gargalhadas que fizeram com que o romancista chegasse às lágrimas, afinal, disse ele, não há nada melhor do que chegar em uma fase da vida em que podemos dizer sem medo que Glauber Rocha não é tudo isso.

No dia seguinte, conhecemos Chris Dunn, uma figura culta e simpaticíssima que fala português com perfeição e mais alguns alunos de doutorado da universidade. Era domingo e todos estávamos na Second Line. Como o Idelber nos explicou, há dezenas de comunidades negras em New Orleans que fazem serviços de ação social. Estas comunidades têm sempre uma brass band e elas se revezam, todos os domingos, em um desfile.

O desfile imperdível da Second Line. Foto: André Tezza

Atrás da banda de metais, vem o povo, isto é, a Second Line. A experiência foi marcante. Há poucos brancos e turistas – é de fato uma atividade da comunidade local, muito autêntica. Um aspecto notável é que as mulheres se vestem com glamour – para elas, é um dia de gala.

Eu e o tio Tovo quase enlouquecemos. Aquilo era uma matéria-prima como poucas para a fotografia. Ao mesmo tempo, um baita desafio: como conseguir tirar fotos que prestassem no meio da multidão. Apesar das dificuldades, eu acho que consegui algumas das minhas melhores imagens de toda a viagem.

Nosso itinerário inicial em New Orleans passou pela Congo Square (praça em que os escravizados podiam tocar instrumentos de percussão nos finais de semana e é considerada o berço do jazz), que fica ao lado do French Quarter, o bairro mais famoso da cidade, com uma arquitetura lindíssima.

Eu estava realizando um grande sonho. Ouço jazz desde a adolescência, li dezenas de livros, fui a inúmeros shows, tive programa de jazz na Educativa FM, escrevi sobre o assunto para jornais e blogs – conhecer o berço da música que mais escutei na vida foi muito especial.

Talvez a mágica de New Orleans possa ser explicada por conta de uma colonização incomum. Ela foi francesa e espanhola. Recebeu escravos africanos e refugiados da revolução do Haiti. É uma mistura de África, Europa e Caribe. Há um clima de liberdade e de festa por todo lugar – aqui, definitivamente, não é a América puritana. É normal as pessoas fumarem cigarros dentro de bares fechados, talvez um dos últimos lugares do mundo em que isto seja permitido. A maconha também é legalizada, como em muitos outros estados americanos. Uma das orientandas do Idelber, a Bárbara França, chegou a comentar que é complicado fazer doutorado na cidade, porque sempre há alguma festa em algum lugar.

Durante a estadia, eu e o tio Tovo fomos a vários bares de blues e de jazz. Atualmente, a rua com a melhor programação não é mais a famosa Bourbon Street, mas a Frenchmen Street, onde fica o sensacional Spotted Cat. Ali, bati o ponto mais de uma vez. Também fizemos um tour de barco pelo Mississipi, conhecemos o aquário, entramos na casa de Faulkner que hoje é uma livraria, visitamos o ótimo Museu de Arte e finalmente comemos realmente bem na viagem, experimentando um excelente Gumbo no Napoleon. No Brasil, eu me arrisquei muitas vezes a fazer o Gumbo por conta própria sem nunca ter experimentado o verdadeiro. Repeti o cardápio sempre que podia.

Favela Chic, um dos bares da Frenchmen Street. Foto: André Tezza

Quando fomos na segunda vez ao Napoleon, estávamos jantando em uma sala mais reservada e de repente chega um sujeito com óculos de aros grossos coloridos que era a cara do diretor Spike Lee. Ele se sentou exatamente atrás da nossa mesa. Escrevi no celular e mostrei para o tio Tovo: “Eu acho que o Spike Lee está aqui”. O Tio Tovo então buscou imagens do Google e realmente o sujeito era muito parecido. Será que era ele?

Eu vi gente entrando e saindo no salão em que estávamos, olhos arregalados, em direção ao homem. Então chegou uma mulher, que ficou do meu lado e pude ouvir algo como “eu sabia que você estava na cidade, tem algumas coisas sobre cinema que gostaria de conversar contigo”. Era mesmo o Spike Lee e agora, eu e o tio Tovo, dois tímidos, não sabíamos o que fazer. Eu queria uma conversa, uma foto, mas também veio a censura interna dos Tezza, o cara deve ser muito assediado, não deve mais aguentar gente estranha querendo falar com ele. Não conseguimos vencer a timidez e fomos embora. Então disse para o romancista premiado, “puxa vida, tio Tovo, o Spike Lee não te reconheceu, que pena!”. Demos gargalhadas e aliviamos a tensão.

O tubista Steven Glenn, no Spotted Cat. Foto: André Tezza

A temporada com o Tio Tovo terminou e comecei a minha viagem em direção à Califórnia pela segunda vez. O plano era entrar no México por San Diego e finalmente começar a jornada latino-americana.

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