Caminhos do Blues com Cristovão Tezza

Passamos pelos campos onde os escravos inventaram o blues e rodamos por estradas míticas atrás de boa música e um pouco de cerveja

Parte II – O Mississipi e o bar do Morgan Freeman

Partimos de Memphis por uma rodovia mítica, a Highway 61. O que mais vimos foram as plantações de algodão e o trilho do trem. Na época da escravidão, durante os cantos da colheita, aqui surgiu o blues, uma matriz musical que seria fundamental para o desenvolvimento do jazz, do rhythm and blues e do rock. O blues é um ancestral fundamental de boa parte da música popular do século XX.

Leia mais: Os caminhos do blues com Cristovao Tezza, parte I

Nossa primeiro destino era Clarksdale. Com pouco mais de 14.000 habitantes, é menor que Morretes. Pela primeira vez na estrada, o tio Tovo recebeu as instruções de bordo e começou a me chamar de capitão. São instruções mínimas, para entender a diferença entre morar no Paçoca e em uma casa: o vaso sanitário tem descarga no pé, o papel higiênico é especial e pode ser descartado no vaso, o banho necessariamente econômico. Além disso, há a ética da organização permanente – como a casa é móvel, o que fica espalhado pelos cantos cai e quebra.

O tio Tovo então me disse que tenho uma disciplina germânica. Pela primeira vez na vida escuto que sou organizado. De fato, eis uma mudança significativa que a vida cigana me trouxe. À noite, com a tia Beth no viva voz, “André, o Cristovão já deixou tudo espalhado pelos cantos? Ele é terrível com isso”. Olho em volta e há roupas, cabos, lentes fotográficas e sacolas de compras por todos os lados.

O Charme das ruas de Clarksdale. Fotos: André Tezza

Pelos aplicativos, descubro um camping municipal na periferia de Clarksdale. Há exceções, mas em geral os campings públicos são mais baratos, menos estruturados, malcuidados e com banheiros proibitivos para uso humano. O de Clarksdale tinha água e luz – o que é suficiente para o melhor que o Paçoca pode oferecer. A entrada era meio confusa e demorou para eu descobrir onde era a recepção. Chegando lá, uma moça simpática me deu as informações básicas. Pergunto sobre o melhor lugar da cidade para escutar blues e ela me diz que o Ground Zero “is the thing”.

Estaciono o Paçoca, era o início da tarde. Vimos muitos trailers ao redor, a grande maioria de residentes fixos. Para os mais pobres, sai mais em conta morar em um trailer dentro de um parque público (com água, luz e esgoto) do que alugar uma casa. Enquanto começo a preparar o primeiro churrasco da expedição, um senhor que estava no trailer em frente se aproximou. Descabelado, poucos dentes na boca, ele vestia uma camiseta com a inscrição “We the People”. Sorridente e curioso, logo entendemos que era um hippie remanescente. Ficou impressionado ao saber que éramos brasileiros e nos desejou boa sorte na viagem.

Churrasco no camping de Clarksdale. Foto: André Tezza

Mesinha arrumada, caixinha de som tocando blues, latinhas abertas e eis o nosso banquete. Estava ventando muito, mas nada atrapalhou a nossa alegria. Feita a sesta, partimos à noite para o “the thing”, o Ground Zero. O dono do boteco é o ator Morgan Freeman e há várias fotos dele no interior. Entramos em um enorme galpão, todo grafitado, por dentro e por fora – não há uma única parede sem rabisco. O lugar não tinha mais do que cinco ou seis mesas ocupadas, todas elas de turistas, metade estrangeiros. Fora da temporada, no meio da semana de uma cidade minúscula, não teria como ser diferente. Deduzimos que o Ground Zero provavelmente era subsidiado pelo Morgan Freeman.

O tio Tovo pediu a primeira cerveja, que veio em um copo de plástico. Cada qual tem as suas próprias exigências inegociáveis. O tio Tovo é sommelier de copo de cerveja. Depois da reclamação, a garçonete trouxe um copo de vidro, que estava no congelador, o que imediatamente foi aprovado com um largo sorriso. Pedimos uma comida para forrar o estômago e, como costuma ser a norma, não havia outra opção exceto fast food em pratos e talheres de plástico.

O exterior…
… e o interior do Ground Zero. Foto: André Tezza

O Ground Zero tem shows todas as noites e quando a coisa começou, eu e o tio Tovo nos entreolhamos em transe. Era inacreditável. Estávamos em uma cidadezinha minúscula, longe de tudo, e no palco estão a cantora e pianista La La Craig e sua banda, com baixo, bateria e guitarra. Música de altíssima qualidade, melhor do que tudo o que vimos em Memphis.

Sabíamos que havia um outro bar ao lado, o Red’s, também famoso e em um dos intervalos chegamos a conferir o que estava tocando lá, mas decidimos voltar. Foi engraçado porque na volta os músicos estavam descansando do lado de fora e a La La me perguntou, “Eles já pararam de tocar lá?”. Eu respondi que não, mas com ela a música estava melhor. La La agradeceu a consideração.

Na manhã do dia seguinte, fomos conhecer Clarksdale com a luz do sol. A cidade tem uma poesia decadente e é incrivelmente fotogênica. Há cinemas abandonados, grafites inspirados (boa parte mostrando os grandes músicos que saíram da cidade ou de regiões próximas), carros antigos espalhados e um bom museu, o Delta Blues, que conta a história do blues. Quando saciamos nosso ímpeto fotográfico, passamos na encruzilhada da Highway 61 com a 49, que fica no centro de Clarksdale. Foi ali que Robert Johnson, um dos fundadores do blues, fez o pacto com o demônio. Hoje, o lugar é meio sem graça, há só uma placa indicativa, sem o charme do resto da cidade.

La La Craig: música de altíssima qualidade. Foto: André Tezza

Enquanto ainda estávamos próximos de Clarksdale, decidimos fazer duas paradas adicionais. Primeiro, entramos em Tutwiler, onde segundo a lenda local, H.C. Hardy compôs o primeiro blues da história após testemunhar um homem tocando uma guitarra com slide nos trilhos de trem. Há placas e murais no local – para os amantes do blues, um lugar de romaria. Em seguida, continuamos nossa jornada até Indianola, a terra natal de B.B. King. Lá, visitamos o excelente museu dedicado à sua vida e obra, onde também encontramos a lápide do músico mais famoso do blues.

A lápide de B.B.King. Foto: André Tezza

Continuamos na estrada até chegar no camping municipal de Greenville, às margens do Mississipi. Era um parque grande, todo coberto com as folhas de outono, novamente com boa estrutura de água e luz. Não havia ninguém no escritório da entrada e após conversar com o pessoal que estava acampado, descobri o telefone do responsável. Liguei, expliquei que ficaríamos somente uma noite, precisava pagar o ingresso. O responsável comentou comigo que não teria como passar lá neste período, mas me disse que estava tudo bem, ficaria de graça. “São somente U$25, it’s not a big deal”, ele me garantiu pelo telefone. Eu e o tio Tovo demos risada com o “it’s not a big deal”, felizes com o camping gratuito.

À noite fez frio e pude ligar o aquecedor do Paçoca, com a aprovação empolgada do romancista. Foi mais uma noite regada a cerveja. Desta vez o tio Tovo foi para a cozinha e fez uma belíssima salada com linguiça. É interessante que cada morador do Paçoca traz uma novidade que acabo incorporando na minha rotina.

Camping em Greenville, com as folhas de outono

Com as muitas histórias na noitada e com as novas histórias que surgiram no Mississippi, me dou conta que o Paçoca traz um tipo de encontro e intimidade que se tornou impossível para a maioria das pessoas. O normal é ficarmos sempre na correria e acabamos sendo mais virtuais do que reais com nossos amigos e parentes. No Paçoca é uma imersão profunda. O tio Tovo chegou a dizer, às gargalhadas, que o Paçoca é um confessionário. Talvez a necessidade e a urgência que temos hoje das psicoterapias tem algo a ver com isso, porque as conversas mais íntimas se tornaram raras ou impossíveis.

No dia seguinte, partimos para a Louisiana e nos aproximamos de New Orleans, a última cidade da viagem.

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