Memórias do gás lacrimogêneo

Foi a maior operação policial da história do estado. Embora o governo jamais tenha divulgado números precisos, estima-se que cerca de 2 mil policiais tenham sido mobilizados para isolar o prédio da Assembleia Legislativa do Paraná e os deputados lá dentro, o equivalente a um terço de todo o contingente da Polícia Militar na capital.

O efetivo vinha de cidades espalhadas por todo o estado: Umuarama, Guarapuava, Londrina, Maringá, Cascavel e Foz do Iguaçu, a 700 quilômetros de distância de Curitiba. Os agentes haviam sido retirados de trabalhos administrativos, faziam parte de unidades como a Guarda Florestal, o Batalhão de Fronteira e até mesmo a Banda Marcial, que até então ninguém imaginava que pudesse ter outra função além de tocar música ruim no Sete de Setembro. Dentro do prédio da Assembleia, de 200 a 400 integrantes da Tropa de Choque circulavam com cães.

No dia 29 de abril de 2015, toda essa força bruta foi atirada sobre professores e demais servidores estaduais, que tentavam impedir que os deputados votassem o projeto que permitia ao Executivo usar os recursos do Paranaprevidência (uma espécie de poupança para garantir as aposentadorias do funcionalismo) para cobrir rombos no orçamento.

De uma hora para outra, o gás lacrimogêneo tomou a Praça Nossa Senhora de Salete como a fumaça de um incêndio. Dos lançadores, as bombas cortavam o céu como pássaros e então despencavam como pedras, deixando um rastro de gás. Algumas ficavam presas nas árvores, fazendo os galhos parecerem fumegar.

Os efeitos de uma cafungada de gás lacrimogêneo – considerado uma arma química – são imediatos. O trato respiratório se estreita, cortando o fôlego; sugar o ar até os pulmões se torna um esforço semelhante ao de quando se leva uma pancada no estômago; você tosse desesperadamente, tentando libertar o corpo da intoxicação.

Os olhos ficam temporariamente cegos por conta da irritação. A garganta arde. A boca seca. Desnorteado pela confusão dos sentidos, o corpo tonteia e fica à mercê da pancadaria.

Que, naquele dia, não foi pequena. Além do gás havia as balas de borracha, as bombas de efeito moral, o spray de pimenta, os jatos d’água. O espocar de tudo isso funcionando ao mesmo tempo e sendo jogado contra a população fazia pensar em fogos de artifício. E havia, também, é claro, os cassetetes, e o sangue que começou a aparecer nas roupas por conta das bordoadas. Braços, cabeças, rostos. A certa altura, um homem passou por mim com um lado do rosto tão inchado que eu pensei que ele havia dado um jeito de enfiar uma bola de tênis dentro da boca.

No Paraná, jamais se vira a polícia empregar tanta força nem contra grupos historicamente violentos, como torcidas organizadas ou presídios em rebelião. Ao todo, foram mais de 200 feridos, embora até hoje eu acredite que esse número foi subestimado. Apenas uma ambulância, em frente ao prédio de prefeitura, fez naquela tarde cerca de 150 atendimentos: lacerações por balas de borracha; mordidas de cães; braços, dedos e crânios fraturados; pessoas nervosas e morrendo de medo. Um jovem tremia a ponto de não conseguir beber um copo d’água; era asmático e com o gás lacrimogênio tivera a certeza de que iria morrer.

Outros cem atendimentos foram feitos no ambulatório da própria prefeitura, dentro do prédio. O ferido mais grave tinha uma perfuração no olho, causada por um estilhaço de bomba de efeito moral.

Eu não gosto de falar em “cenário de guerra” quando estamos tratando de conflitos urbanos, porque, bem, em guerras pessoas são aleijadas, evisceradas, assassinadas às pencas. A ideia central, numa guerra, é a da letalidade. Uma fonte de dentro da Polícia Militar que entrevistei naqueles dias, porém, deu esse passo por mim e falou em “o Estado utilizando uma lógica de guerra”.

Quando tudo terminou no dia 29 de abril, após mais de duas horas de uma chuva de bombas, era noite. Caía uma garoa fina, ventava e fazia frio. Do chão, manifestantes recolhiam souvenirs  –  cápsulas e estilhaços de bomba, principalmente.

Exatamente um ano depois, em uma manifestação para marcar o aniversário da “batalha do Centro Cívico”, conversei com uma professora da rede estadual de ensino. Ela me disse o seguinte: “Naquele dia, eu senti ódio, coisa que não costumo sentir, de verdade. Eu tive medo, mas o ódio foi mais forte. Como estávamos juntos, eu me sentia forte para enfrentar qualquer polícia, mas ao mesmo tempo, tinha medo de ser machucada. Era uma mistura, uma coisa que até hoje eu não sei explicar. Uma bala de borracha me acertou na perna, mas o ódio era tão grande que eu não senti. Eu respirei muito gás. Da primeira vez, me escorei em uma árvore, achei que ia cair. Depois, parece que eu não sentia mais. Eu não consigo esquecer aquele dia, mas eu queria esquecer”.

É detestável o cheiro de gás lacrimogêneo ao cair da noite. Cheira a derrota.

 

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