Quase tudo quase sempre igual

Se alguém visse, diria que se trata de um movimento orquestrado. Assim que o ônibus estaciona na rodoviária da cidadezinha pouco antes das oito da manhã, eu desperto de modo quase instantâneo. Salto da poltrona – a mesma em que supersticiosamente costumo viajar – e antes de sair com a mochila às costas, despeço-me com certa familiaridade do motorista, um senhor que faz lembrar Woody Allen, mas sem aquele ar meio melancólico, meio blasé. Sento-me à mureta da esquina, de onde vejo os automóveis que passam, subindo pela rua que vem do norte. Em poucos instantes, um carro branco descreve uma curva bem aberta e estaca junto à guia. Através da janela, vejo o sorriso satisfeito de minha mãe. Só então tenho a sensação de, enfim, estar em casa.

Enquanto passamos pela avenida principal, pergunto de alguns personagens locais, qual eu sempre estivesse estado ali ou como se o tempo tivesse estagnado desde que parti. Tudo ainda me é absolutamente familiar, apesar de uma e outra fachada de casarões históricos que, contrafeito, percebo terem sido ocultadas sob letreiros luminosos e de gosto duvidoso, ou apesar, ainda, de mais uma obra à toa que a prefeitura tenha deflagrado sob a desculpa de “progresso”. Até isso, no entanto, parece transcorrer como de costume: a cidade se habituou a resistir às mutilações e aos ataques de gente de muito poder e pouco senso. Coisas da terra.

Já em casa, a mesa posta – com café forte e bolo de fubá ou de cenoura – devolve os aromas da minha infância. É inevitável. Quando dou por mim, já me desfiz dos sapatos e comecei a puxar os “erres”, como se o ato de andar descalço e o sotaque agarrado fossem traços indissociáveis da minha personalidade. Em pouco tempo, meu pai entra pela porta lateral e, ao me ver, exclama: “Ê, carçudo!” – apelido pelo qual meu avô me chamava desde sempre. Ao longo dos poucos dias em que eu permanecer ali, vamos assistir a uns quantos jogos de futebol pela tevê, cismar sobre vida e nos entenderemos até nos mínimos silêncios. Estamos em casa.

Logo, logo, minha irmã toca a campainha, abrindo um sorriso de paz e trazendo minha sobrinha, que vejo crescer aos pulos e que sempre tem algo novo a nos ensinar (agora, aos sete anos e meio, ela já lê livros inteiros, em uma sentada). O resto da “parentaiada”, cada um a seu turno, também vai dar as caras – não por minha causa, é que eles são dados, mesmo, a aparecer. No mais tardar, os vejo no domingo, quando meu cunhado vai se ocupar da churrasqueira, tirando carne de acordo com o gosto de cada um – e que conhece decor. A mim, caberá preparar caipirinhas de limão, cuidando para não carregar demais na cachaça e me desdobrando em salamaleques caricatos de barman. Estamos todos em casa.

Ainda tem meus bons amigos, que estão sempre por aí (alô Kleber, Flavinho, Viggu, Zé Renato…). Alguns vêm filar uma xícara de café, outros, para uns tragos de cachaça. Uns aparecem com prosa, outros com acordes de viola ou de violão. As mesmas caras, os mesmos modos, as mesmas modas, a mesma satisfação. Em um mundo que tropica em transformações convulsivas, é de um valor inestimável constatar que eles permanecem os mesmos e fiéis a si próprios. Não importa quanto tempo passe, quando os encontro, é como se tivéssemos proseado no dia anterior. Meus compadres. Eles todos já são de casa.

Quem me ouve falar assim, até estranha: “Casa? Casa? Peraí! Você não mora fora?”. Sim. A contar da primeira vez que caí na estrada, faz duas décadas que ando por terras distantes. Mas sempre que piso sob aquele teto, as coisas passam a fazer sentido de tal modo que, dentro de mais uns dias, eu me sentiria tão pertencente a tudo, qual fizesse parte do mobiliário até, como o sofá da sala ou a mesa da copa. Desta feita, no entanto, permanecerei apenas pelo tempo de um feriadão prolongado, ao fim do qual voltarei ao caminho que escolhi traçar, carregando o peso das minhas decisões.

No domingo, as gargalhadas fáceis do meu pai assistindo às videocassetadas na tevê vão me soar como uma espécie alarme, que me lembrará que é quase hora de partir. Vou sentir um gosto amargo na boca e um peso estranho na base do estômago, como se somatizasse o regresso. Involuntariamente, um tanto tristonho, ficarei meio mudo. Pela janela do carro que me levará à rodoviária, verei a casa ficando menor, menor, menor… Quando tornar a olhar pra frente, vou ponderar para comigo mesmo que talvez casa seja isso: o lugar para onde a gente sempre pode voltar e onde a gente se sabe nunca estar sozinho. É sempre assim. Quase tudo quase sempre igual. Tudo estará ali. Graças a Deus.

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