Entre os bárbaros

Em 1945, terminada a guerra, o movimento antifascista alemão caçou os últimos colaboradores de Hitler nos escombros do III Reich. Por motivos óbvios, eu não estive lá, mas tenho a certeza de que não foi bonito. O sofrimento imposto pelo nazismo quando fez chover fogo sobre a Europa também não foi. A história do mundo não é uma reunião de senhoras para o chá.

Historicamente, os movimentos antifascistas emergem quando o caldo da tirania engrossa. No Brasil, o fascismo está nas ruas e está nas redes. Está empoleirado no palácio presidencial, como uma ave carniceira. Na semana passada, circulou pelo zap um dossiê com nome, foto, número de documento e endereço de pessoas consideradas antifascistas pelo bolsonarismo. E que precisam ser perseguidas, destruídas, anuladas.

Um veterano do movimento punk poderia olhar a lista e bocejar. “Ei, sempre foi assim”, ele diria. “Isso sempre aconteceu.”

Sim e não.

Sim, punks caçam gangues de skinheads e gangues de skinheads caçam punks. A cada biênio, alguma coisa aparece no jornal, quando a violência escala a ponto de terminar em morte. Mas a tensão subterrânea é permanente. Eu disse que ninguém serviria chá, não disse?

E não, aquela não é apenas mais uma lista. São mil páginas. O grau foi ajustado. Mais gente precisará adquirir o hábito de vigiar por cima do ombro. Três pessoas que eu conheço estão no documento.

Os antifascistas desprezam a polícia, cospem na bandeira, zombam do patriotismo e podem apedrejar as vidraças do seu banco. Eles não ligam para suas veleidades de civilização, não usam punhos de renda, não seguram taças de vinho e não tiram selfies. Podem parecer vândalos grotescos para a sua sensibilidade afetada. E mesmo assim, quando a noite cai e as tochas iluminam os capuzes brancos, você quer saber que eles estão por perto.

Muitas pessoas aparentemente pacíficas gabam-se de ser patriotas, ignorando o fato de que o patriotismo, esse sim, é a ideologia mais mortífera da história da humanidade. Ele é facilmente adaptável e serve a qualquer propósito, seus clamores sobre terra, sangue e pureza incendeiam facilmente os corações.

O patriotismo está no Brasil e na Ucrânia, nos Estados Unidos e na Índia, na Rússia e na Etiópia, na Guatemala e no Sri Lanka. O que um patriota brasileiro e um patriota ucraniano têm em comum? Absolutamente nada, à exceção do fato de ambos serem extremamente retardados. “Um ser humano que se respeite não tem pátria”, diriam os antifascistas.

No Brasil, a bandeira nacional é um resquício do império. Suas cores representam as casas nobres europeias – os Bragança e os Habsburgo – que exploraram e escravizaram. Aquela bolota azul ridícula lá no meio tem algo a ver com o céu e o Cruzeiro do Sul.

O céu e o Cruzeiro Sul.

A galinha cercada por pintinhos no pano de prato velho que eu acabei de estender no fogão tem mais significado do que isso.

Escrevo este texto no sábado. Amanhã, domingo, diversas manifestações puxadas por antifascistas estão programadas no Brasil, também em Curitiba. Quando você ler este texto, na segunda-feira, ele provavelmente estará velho. Eu quis escrever mesmo assim.

A decisão sobre ir ou não ir às manifestações não é fácil, não é simples. No momento, enfrentamos a maior emergência sanitária em cem anos, uma doença altamente contagiosa que o governo deixa correr à larga. Os cadáveres se empilham. É como se estivéssemos todos metidos em um pântano venenoso infestado por malária. Pra sair, você precisa se mexer, mas ninguém sabe onde pisa.

Eu não posso garantir o que vai acontecer nas manifestações – mas você, a essa altura, já sabe. Podem ser o início do fim de Jair Messias Bolsonaro. Podem ser um fracasso retumbante. Podem ser uma esperança, explodir em violência aberta, terminar de colocar tudo a perder. Tudo é instável e incerto.

Eu também não sei há quantos dias exatamente estou trancafiado em casa por conta da pandemia. Não contei. Suponho que entre 70 e 80 dias, talvez um pouco mais. Não tenho muitos problemas com isso. Tive a vida toda vocação pra anacoreta e não sabia.

Ninguém está indo para as ruas simplesmente porque ficou puto e resolveu tomar um ar. Entre copos de leite e a PM fora de controle, transformada em braço armado do bolsonarismo, o risco é real. Quando você cruza a linha do abismo, o próximo passo é se esborrachar lá no fundo.

Na sexta-feira, alguém escreveu que os atuais protestos antifascistas são coisa de idiota. Que as ruas agora deveriam ser reservadas apenas para os serviços essenciais – e para os bárbaros.

Que seja. Eu já fui chamado de coisa pior.

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