Lia – Capítulo 78

Muita gente. Muito barulho. Crianças, especialmente. E tantas.

Ela estava animada, gostava daquilo. E deixava a filha tão contente. Seria bom não estar sozinha no centro de tudo, o tempo todo. Seria bom não precisar ser o único eixo estável em todo aquele caos tão feliz, tão exigente.

Podia até ser bom. Mas nunca foi assim.

Ela estava acostumada, e gostava demais de ver ouvir o zunzum das crianças correndo, sentir o vento da passagem de uma delas logo quando se virava para se afastar da pia e se dirigir à geladeira.

E estava calor demais.

O marido tinha dito tantas vezes que ia consertar o ventilador da cozinha. A estúpida era ela. Ela me disse. A estúpida era a própria Lia por não ter aberto de uma vez aquela porcaria de plástico barato pra ver se conseguia dar jeito naquilo tudo. Não podia ser difícil.

Estava calor demais ali na cozinha. Dezembro.

Ainda por cima com o forno ligado. Bolo no forno.

— Mãe, mãe.

— Oi, querida.

Você precisa pensar um segundo, Lia. Tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. O forno aceso, a panela no fogo. Tira isso da geladeira de uma vez e põe na mesa. Mas não na borda porque alguém pode derrubar. Você só tem uma travessa de vidro bem grande. E cadê as forminhas de papel? E por que você não fez isso antes, Lia?

— Tia, tia.

— Diga, meu anjo.

Você precisa pensar um segundo. Botar tudo em ordem pensar um segundo ficar em silêncio outra vez nesse caos nesses gritos calor nesses gritos as vozes pedidos crianças as vozes que tanto que tantas meninas meninos uns vinte faz tempo está tarde são quase três horas já devem ter fome já devem são tantos quem era esse ali já não sei tanto caos tanto grito eu não sei que calor que calor que calor que calor mas cuidado esse forno está quente a panela também e tem vidro na mesa e se quebra e se quebra meninos meninas são tantos correndo gritando e esse sol e são quase três horas é hora do lanche do bolo velinhas da festa a gaveta as velinhas o forno o calor esse…

Fechou os olhos.

Levemente.

Respirou devagar com a boca entreaberta, parada exatamente no meio da cozinha, sentindo uma gota gorda de suor que lhe caía da pontinha do nariz.

Passou a ponta da língua pelos lábios e enxugou de novo as mãos no avental.

Deixou que as mãos subissem do avental pela barriga até a base dos seios e desceu aos quadris. Voltou a prestar atenção no ar que entrava e saía de seu corpo. Voltou a perceber o parco espaço entre os lábios como algo quase concreto, moldado por aquele mesmo ar.

Sentiu os pés nas sandálias bem firmes no chão e sentiu subir deles uma linha que lhe atravessava o corpo e a punha mais reta. Quase elevada.

Abriu suavemente os olhos com um sorriso tênue e percebeu que estava tudo em silêncio em meio aos gritos.

Aos gritos.

— Lia, lia.

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