O Breve Verbo

Pequeno compêndio de memórias próprias ou roubadas; livreto de patranhas; manual não oficial de regras antigramaticais.

Capítulo uno. Uma semibreve justificativa existencial.

Primeiro preciso desmentir os boatos que circularam na sociedade curitibana a meu respeito. Disseram por aí que eu andava na pior; que eu tinha parado de escrever aqui porque estava recluso em meu sítio em Atibaia, me recuperando após ter sido contaminado pelo ritmo ragatanga; que eu estava incomunicável em Portugal e nem sequer acessava os ficheiros no ecrã de meu telemóvel; por fim, que eu mesmo estava plantando tais boatos com o objetivo de gerar hype.

Mentiras deslavadas. Não tenho acesso à sociedade curitibana para plantar boatos, não sei o que é hype e andava por aqui mesmo, planejando certinho o que seria essa nova coluna.

Planejei escrever crônicas sobre minha infância; sobre os amigos que tive na adolescência; sobre pequenos fatos que eu gostaria de desdobrar; sobre histórias que outras pessoas me contam; planejei escrever ensaios muito duros contra o governo; resenhas de filmes; receitas de pães; dicas de gramática; análises de discurso.

Queria escrever poesia, mas o máximo que saiu foi “meu coração é o epicentro na pandemia do amor”.

E como disse o Caetano (Veloso), “gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”.

***

Minha professora de português, num curso pós-médio, lá por… não lembro o ano, mas com certeza foi antes de você nascer, apareceu na sala de aula, iluminada, com uma descoberta que tinha feito.

– Sabem por que as crianças de hoje em dia não sabem conjugar verbo no futuro?

Pessoal se entreolha, como assim, não sabem?

– Reparem que elas não dizem “eu farei, eu direi, eu andarei”, e sim “eu vou fazer, eu vou dizer, eu vou andar”.

Já dava pra imaginar que ali vinha bomba.

(Deixando tecnicamente claro: “farei” é só uma forma de indicar que a ação ocorrerá no futuro, mas não a única. Chama-se “futuro sintético”. “Eu vou fazer” também é uma forma válida e chama-se “futuro analítico”. Gramáticas mais conservadoras tendem a reprimir o uso do futuro analítico, muito embora ele ocorra na língua por uma necessidade prática: em geral, indica uma ação certa que ocorrerá em breve, diferente do sintético, que indica uma ação distante e talvez incerta).

– É porque elas ligam a TV e só veem desgraça, morte, assassinato. Aí elas não têm uma perspectiva de futuro, por isso não aprenderam a conjugar verbo.

Cé loco, moleque. Criançada na cabeça dela só assiste o Datena o dia todo. E de onde ela tirou que um futuro como bandido não é um futuro?

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Eu poderia ser jurado do Master Chef. Outro dia o cara foi avaliar a comida e disse: seu prato está bom. Está tecnicamente perfeito. O sabor está como esperado. Bem temperado. O sal na medida exata. Mas falta um tchan. Um rãããm.

Juro que eu poderia ser jurado. Não gosto da cara da pessoa, faço o mesmo.

– Macarrão tá show, mas achei meio blop.

– Como assim?

– Ficou meio azeitona-que-não-refrescou-direito.

– Que isso? Não conheço essa expressão.

– Talvez fosse o caso de repensar se você está mesmo no nível para estar neste programa.

– Desculpa, chef.

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Na OLX (prezado editor, caso não seja adequado publicar conteúdo com nome de marcas, favor trocar por “em uma Famosa Plataforma de compra e venda de Produtos Usados”, pra ficar meio David Foster Wallace, igual quando a imprensa chamava o Facebook de “uma famosa rede social” e o Twitter era “uma famosa rede de microblogs”, que maravilha, microblogs) o vendedor anuncia um produto com um valor muito abaixo do normal.

O santo desconfia.

– É falsificado?

– É paralelo.

– Paralelo que você quer dizer é o que?

– Esse não é o original, é o paralelo, esse.

– O que significa paralelo?

– Falsificado kkk.

Tendência demais.

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Último, prometo:

Os gregos antigos não conseguiam entender nada do que os persas diziam por causa da forma como eles pronunciavam suas palavras, algo que, numa imitação grosseira, soava como um “bar-bar-bar”. Por isso, de forma pejorativa, começaram a chamar os persas de bárbaros, palavra que passou, com o tempo, a designar qualquer estrangeiro, e que, aliada a outros adjetivos, como “briguentos, nojentos, violentos”, falava mais sobre os gregos do que sobre os persas e demais vizinhos.

A palavra ficou tão famosa que veio a ser adotada pelos povos romanos. A palavra “barbarus”, em latim, era usada para classificar quaisquer pessoas que não seguissem as leis e tradições romanas – por fim, os próprios gregos eram chamados assim. Kkk.

Como a história se repete, hoje todo brasileiro sabe o que significa quando alguém diz que “tal produto é xing-ling”. Pelas exatas mesmas razões.

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Nós somos a nossa língua. Seja um professor de português ensinando besteiras linguísticas, seja um jurado do Master Chef recorrendo a sons aleatórios para expressar uma opinião, seja a troca de uma palavra por outra para amenizar o fato de que vende produtos falsificados, seja para justificar xenobofia.

Nada é mais cultural do que a própria língua. E talvez, por fim, seja por isso que esta coluna existe.

***

Na próxima semana vou falar sobre o dia em que meu amigo ficou um mês chamando um outro cara de Chuck sem saber que esse não era seu nome. Ou sobre o dia em que fui refém. Ou sobre a menina que fazia ginástica laboral na repartição e claramente odiava seu trabalho.

Não sei ainda. Vote na enquete que está disponível no site! (prezado editor, favor contratar equipe de TI para disponibilizar enquete para que os leitores possam votar no site. Não me faça passar por esse papelão de prometer uma enquete e não existir ferramenta para isso).

Vou cortar o cabelo e já volto.

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