As esquecidas

O sol de verão entorpece e esvazia as ruazinhas do Bairro Alto. Mesmo nas janelas escancaradas dos prédios antigos, não se vê ninguém. Não há vento. Diante do gradeamento de ferro das sacadas, as roupas pendem duras dos varais.

São onze horas.

Deitado no sofá da sala, suando, só em cuecas, já não consigo ler. Me obrigam a ouvir a missa.

A ladainha vem do andar de baixo. Como todos os domingos a essa hora, dona Napoleontina assiste à Eucaristia Dominical, na RTP 1. Deixa a tevê no volume máximo. A lenga-lenga melancólica ecoa pela rua, mas ninguém reclama. Nishan Singh, o comerciante paquistanês, eternamente à espera de clientes na esquina, com o turbante roxo de sikh, sabe que a velha é surda, solitária, que a tevê é sua única companhia.

Posso imaginá-la sentada na poltrona de veludo gasto, pequena, rechonchuda, entre santos de gesso descorado, andorinhas de porcelana negra e retratos de parentes mortos.

O padre fala na transubstanciação do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo. Sua voz lenta, assexuadamente sedutora, parece o fumo que emana do pêndulo hipnótico de um incensório. Vejo a velhinha atenta ao sermão midiático; mastiga gomos de tangerina, joga as cascas pela janela, sob a luz reconfortante do martírio sublimado.

Não há como me concentrar… Resolvo abandonar o livro.

Napoleontina, penso. Mais uma senhorinha dos tempos de Salazar. São tantas entre a população envelhecida de Lisboa. Sobre a roupa pobre, vestem até hoje o avental surrado que as protege da acusação de não estarem fazendo nada. Foram empregadas domésticas, costureiras, datilógrafas, balconistas, operárias. Foram o assoalho encerado de joelhos; a carne amolecida a martelo; a roupa da família lavada à mão, com água fria e sabão em pedra. Foram as escravas piedosas e insones de seus maridos, filhos, padres, chefes. Coração mudo, olhar baixo, desejos sufocados sob a glorificação da maternidade, da obediência e da virtude, foram a argamassa com que se ergueram as igrejas e bancos do patriarcado.

Quando, imperceptivelmente, seu mundo acabou, quando o patriarcado assumiu outros disfarces, já não sabiam viver sem o avental. Ainda o vestem pela manhã, e cozinham, enceram a casa e rezam para os fantasmas de gravata que levaram consigo a censura tolerante, o ensinamento grave, a explicação do mundo. A chave secreta de sua vida servil.

Andando por Lisboa, encontro essas velhinhas debruçadas no peitoril das janelas. Às vezes nem se debruçam, parecem espectros em pé, na penumbra, a olhar desconfiadas para uma realidade que já não reconhecem. Uma delas, criatura minúscula que vive ao pé de Alfama, ficou conhecida por espalhar migalhas de pão no piso da sala, para que entrem pombos e lhe façam companhia. Outra, com quem conversei brevemente na Feira da Ladra, me contou que teve uma filha, já falecida, dois netos, sete bisnetos. Só não se lembrava ao certo da voz do marido. Ia fazer cento e dois anos.

– Deus parece ter-se esquecido de mim.

A missa termina. Olho os telhados que encobrem a história íntima dessas casas, a maior parte delas hoje alugadas a turistas por meio de aplicativos.

Um dia viveram aqui os personagens que agora habitam a memória de uma velhinha surda, crédula, esquecida por Deus.

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