Uma década depois

A antiga sinagoga Francisco Frischmann agora é um centro de operações da PM. Uma grande placa na Pracinha do Amor nos avisa: estamos em área militar. Um grupo de policiais, encostados em suas viaturas, ri e papeia na Saldanha Marinho. Tomam sol. São oito carros estacionados, em ótimo estado. Tudo parece diferente. O céu está azul há semanas. Os motéis e os puteiros ganharam pintura nova. E ninguém mais fuma crack e definha por aqui. Fumam e definham nas quadras ao redor.

Minha filha mais velha está para completar dez anos e há muito não cabe no meu colo. Minha caçula vai chegando aos cinco, ainda desfruta da minha garupa, mas já não lembra que morávamos ali, no prédio da esquina. Fazia tempo que não passeávamos juntos pela região, e a mais velha estranha tudo, principalmente a limpeza do local. A ausência de pichações na parede da sinagoga. O deserto em volta.

Cruzamos a praça na diagonal, devagar, examinando suas árvores. As tipuanas e a paineira, que já eram bem velhas, continuam as mesmas. A araucária mirrada caiu durante uma chuva mais forte, no outono de 2017. Mas os dois jambolões vizinhos à banca de revistas, antes tão miúdos, já atingiram um tamanho respeitável. E o espinheiro atrás do busto de Santos Dumont cresceu tanto que logo fará sombra ao triste pai da aviação.

Um vento fresco varre o lugar. Minha filha mais velha me chama a atenção: Percebeu, pai? Não. E ela me diz que é isso mesmo, não há mais o que perceber. Antes, na praça, tudo fedia a xixi e a cocô. Agora não, o cheiro acabou. É verdade, noto. Deve ser porque ninguém mais defeca e urina por aqui. Defecam e urinam nas ruas ao redor. O canto que o pessoal usava como banheiro, aliás, foi transformado em estacionamento. Quatro automóveis reluzem ao sol onde antes se erguia, instável e ameaçadora, uma latrininha improvisada, de pedra e tijolo.

É, tudo mudou. Ou quase tudo. Porque ainda há gente dormindo na Pracinha do Amor. Hoje, por exemplo, encontramos este homem num banco de madeira, sozinho, enrolado numa manta de flanela cinza. Sei quem é. Eu o conheci há muitos anos, lembro de quando se instalou por aqui. Um homem negro de barba espessa, alto, silencioso, sempre pensativo. Usava paletó e sapatos pretos. Às vezes interrompia suas ruminações e me cumprimentava, mas só por obrigação, nunca puxou conversa nem me perguntou ou pediu nada. Ao revê-lo ainda ali, dormindo e acordando na rua, dez anos depois, me espanto e envergonho. E aproveito que está apagado para observá-lo. A única diferença entre este homem e aquele, de uma década atrás, é o cabelo. Ainda não embranqueceu, mas já está ralo. No topo de sua cabeça, brilha uma coroa de padre.

Talvez por sentir-se observado, ele desperta. Abre os olhos, mas não nos vê. Olha para o céu. Azul. Nenhuma nuvem. Tosse e faz um esforço para se sentar. Senta. Tosse de novo, escarra. Livra-se da manta jogando-a para trás. Não tem medo do frio, confia no sol da manhã. Limpa a garganta, tosse, escarra mais uma vez e, de repente, canta forte, imitando um galo. A imitação é perfeita, sua voz nem parece humana. Minhas filhas se retraem. Ele volta a cocoricar, duas, três, quatro vezes. Depois ri e olha para nós, estava brincando com as meninas. Apalpa-se, vasculhando a japona, agora sério, falando sozinho, numa língua pessoal, rebarbativa. Saca de um dos bolsos um pequeno frasco escuro. Vira o seu conteúdo num gole só e lança o frasco ao chão, por cima do ombro. Minha caçula faz menção de adverti-lo, mas eu a contenho a tempo.

O homem se levanta, ainda é alto, fisicamente poderoso, a coluna ereta, mas está longe de ser o mesmo. Algo em seu olhar, antes tão sóbrio, se extraviou. Investiga o mundo lateralmente, como faria uma ave. Talvez seja um problema de visão. Ele se espreguiça e se põe a andar, primeiro em círculos, depois para trás. Depois para a frente. Não cisca, embora arraste os pés. Sobe a escada ao lado do prédio da PM, evitando encarar os policiais, e vai dando a volta na praça, fazendo a sua ronda. Passeia pela Saldanha, vira à direita na Ébano e, por último, na Cruz Machado. Encontra duas mulheres no caminho, uma delas levando um lulu na coleira, agasalhado. Diante das mulheres faz uma mesura elegante, não como se as cortejasse ou reverenciasse, mas como se pretendesse estender, às senhoras, um tapete vermelho de ironias. Por aqui, madames, diz o homem, e sua voz, agora, soa bela e calorosa, é a voz de um homem quase desejável.

No centro da praça, minhas filhas e eu verificamos o frasco recém-descartado por ele. Leio o seu rótulo. Trata-se de um xarope anti-histamínico, sabor framboesa. Uma bebida doce para o desjejum. Subimos a escadinha até a Saldanha. Decidimos ir ver de perto a arvorezinha que substituiu a araucária morta. É uma planta ainda muito jovem, mas que já tem os seus dois metros de altura. Não a identifico, parece uma espécie comum, nem chega a ser bonita, apenas simpática. Em sua copa, bem lá no alto, há uma flor amarela, de um amarelo muito vivo, somente uma, em meio à folhagem verde-clara.

Nos distraímos olhando para ela, e o homem, sem que o percebêssemos, se junta a nós. Quando me vê, enrijece o corpanzil debaixo da placa que diz Área militar e bate continência. Bate também os calcanhares, e só então noto que está descalço. Não retribuo a saudação, mas lhe dirijo um bom-dia informal, como nos bons e velhos tempos, aqueles que sempre passam e jamais existiram, o senhor vai bem? Ele diz que sim, vai bem, está forte e feliz, obrigado, a vida segue, Deus é grande, Deus é gigante, Deus é pai.

Eu concordo em silêncio, a vida segue, claro, e subitamente fico sem saber o que dizer, nunca sei e nunca soube, e por isso resolvo me despedir. Pego as meninas pelas mãos e o homem se empertiga, bate nova continência, mas se desequilibra um pouco, se apoia na árvore jovem, a árvore balança ao peso do gigante e, lá no alto, sua única flor amarela se desprende do galho e despenca, irresgatável, no espaço vazio que, entre nós, não para de se expandir.

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