Lia – Capítulo 27

Os dois, que ela não conhece, um dia passaram uma tarde sentados na sala da estar da casa do mais novo, cada um com seu violão, cada um apontando numa outra direção. E os dois ali rabiscaram, conceberam, cantaram, criaram bem mais de uma música. Eles foram em seguida mostrar uma delas ao pai do mais novo, aquele, que tinha sido ele também músico na juventude, e ensinou o filho a tocar trompete e piano. Mas não aqueles violões, não daquele jeito americanizado e tão barato…

Mais de vinte anos depois, um rapaz que tinha pouco mais que mais que vinte anos, numa tarde meio feia do outro lado do oceano, esperava com a mão suspensa a pausa definitiva, que anunciasse que o discurso do locutor tinha chegado ao fim. Era uma arte sutil, era quase ciência isso de esperar ter entendido o fim, para não deixar os ouvintes esperando tempo demais, e também (e fundamentalmente) não passar por cima de uma eventual nova frase do locutor, que vivia no mais profundo amor pela próprio voz e por tudo a que ela sabia dar voz. Um encantado. Um tagarela. Um porre.

Mas se o rapaz queria continuar trabalhando ali (e queria!), era preciso conviver com o locutor, e aprender a ler suas pausas, escutar sua fala sem ouvir, sem prestar atenção mas atento a qualquer sinal do fim do jorro.

Que veio.

Porque cessou.

O sinal do fim. O jorro.

E a agulha de diamante desceu firme para o começo do sulco do disco. Compacto simples. Lado A. A maçã verde.

Ali ela passou a percorrer a lenta espiral dos sulcos, a cada minuto trinta e três revoluções, mais um terço, ajudando a transformar cada pequeno sobressalto, cada oscilação numa cadeia equivalente de pulsos elétricos que podiam ser transmitidos para um amplificador e dali para uma caixa de som. Ou, como era o caso aqui, segundo um caminho mais tortuoso pelo ar, com os sinais elétricos tendo sido também eles convertidos em ondas eletromagnéticas de comprimento maior que as do espectro da luz infravermelha. O negativo do visível, sua contraparte.

Essas ondas se propagavam de maneira radial de um ponto vizinho à cruz do Pilarzinho, irradiando-se por toda a cidade. Ou quase. Prontas para serem captadas por uma antena e novamente reconvertidas em sinais elétricos, para apenas então se tornarem som num aparelho de rádio.

A antena que interessa aqui era a haste vertical que orgulhosamente se erguia sobre o capô de um fusca verde ervilha, ano 77, que agora percorria a Vicente Machado em velocidade de cruzeiro. Dentro dele, Lucília Kappelhoff, a Lia, que até inda agorinha ouvia meio entediada o falatório daquele locutor insuportável. O problema para a Lia, era que aquela rádio era basicamente a única que tocava música decente na cidade. E se para ouvir alguma coisa boa o preço era ouvir aquela anta por alguns minutos a cada três ou quatro músicas, ora… era esperar.

Quando começou a música escrita por aqueles meninos, gravada alguns anos depois por eles e mais dois outros, um sorriso involuntário, mas nem por isso menos percebido, apareceu de pronto no rosto de Lia, que começou imediatamente a cantar e tamborilar no grande aro do volante do fusca.

E era assim, cantando, meio levantada do chão pela música, que ela parou no sinal da esquina da João Negrão. Batucando e cantando, agora já a plenos pulmões. Sorriso aberto.

Num pequeno momento de canhestrice envergonhada curitibana, no entanto, ela rapidamente saiu do quase transe para tentar verificar se a pessoa no carro parado logo ao seu lado no sinal não estaria por acaso olhando boquiaberta para aquele pequeno espetáculo de indiscrição. De inadequação.

E foi ali que ela viu que a pessoa, um rapaz, estava na verdade cantando, e que a movimento dos lábios dele parecia corresponder exatamente à música que ela estava ouvindo. Exatamente. Lia, ali, não sabia se voltava a cantar, agora certa de não passar vergonha, se abria a janela e conversava com o rapaz (mas acabava de vez com o que de único tinha aquele momento), ou se simplesmente olhava, enlevada, feliz por estar vivendo aquilo, aquela felicidade toda, com outra pessoa, os dois unidos pela música dos dois meninos, do outro lado do oceano, décadas e décadas depois, graças a ondas que comprimem e distendem, de forma imperceptível para todos menos a antena, o ar que separa pessoas, antenas e fuscas. Porque naquele momento todos os carros são fuscas de antenas eretas.

Foi assim que a Lia conheceu seu marido.

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