A crônica não mata – Parte 11

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Chega de mentiras! Acordo com a bagunça do coral de jovens lá fora. A noite está quente, o bar cheio. Eu te quero mais que tudo, eu preciso do teu beijo. Não me animo a levantar da cama, espiar pela janela os meninos cantores da pandemia em suas mesas a céu aberto, os copos em riste. Já os conheço bem. Eu entrego minha vida, dizem eles, pra você fazer o que quiser de mim. Pode até ser. Mas parecem cada vez menos dispostos ao sacrifício. E desconfio que cantar “Evidências” em uníssono seja apenas algo que os faz se sentirem, todos, acima de tudo, brasileiros. Diz a verdade.

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Já madrugada, me assusto e acordo de novo. Alguém parece haver amassado com as mãos o meu coração de lata. Respiro fundo, lembro que estava dormindo. Ouço gritos na esquina, um princípio de discussão. Finalmente desperto da letargia e entendo o que houve: é mais um acidente no cruzamento da Amintas com a Faivre. Vou à janela verificar. Há vários automóveis espalhados pela pista, não sei se todos envolvidos na colisão. Um jovem tenta fugir do local, toca o carro pela calçada, mas entala entre um muro e uma árvore. O motor reclama, os pneus cantam. Não há como o motorista escapar. Um homem o arranca do volante e o cobre de socos. Tem prática de briga. O outro não tem a menor chance, acusa os golpes, cai, será que bêbado? Diz que seu pai trabalha não sei onde, pede calma a seu agressor, a quem chama de amigão. Nos prédios, a assistência exulta. O homem salta sobre o jovem e o vira de bruços. Amarra seus pulsos às costas com o que de longe se assemelha a uma abraçadeira plástica. Já se ouvem, agora, alguns apelos de chega, deu, chega. Diversos populares, a maioria sem máscara, surgem dos bueiros mais próximos. A polícia, por sua vez, está demorando a aparecer. E nem sinal de ambulância. Na verdade, ninguém se feriu, exceto o fujão imobilizado. Ele não sabe, mas foi justamente para isso que tanto se produziu esta noite. Para sair e acabar imolado, cordeirinho de Deus, na calçada da minha rua. Missão cumprida.

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Há um pequeno ipê-amarelo que, faz tempo, acompanho da minha janela. Está em algum lugar da Comendador Macedo. Nunca o vi de perto. Este ano não floriu. Será que morreu? Visto duas máscaras e vou averiguar. Minhas pernas se ressentem do isolamento. Meus pés doem, desacostumados das calçadas irregulares do bairro. Mas é preciso andar. Na General Carneiro, passo em frente à escola de dança onde minha filha mais velha aprendeu sapateado. A escola fechou. Em seu lugar abriu uma clínica para o tratamento do pé diabético. A clínica também fechou. Encontro mais adiante o ipê que procurava. Está morto.

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Algum artista de rua adesivou um muro da Faivre com uma pequena cópia do Velho Sofrido no Limiar da Eternidade, de Van Gogh. E outro artista, ou quem sabe o mesmo, anotou debaixo da imagem: “Esto com depreção”. Fotografo e catalogo a obra na galeria do meu celular. De um carro que vem descendo a Marechal escapa um refrão animado: “Todos juntos vamos, pra frente, Brasil, Brasil…”. É, parece que algo finalmente reunificou o país. Estamos ligados na mesma emoção.

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Enquanto escrevo, observo um grupo de trabalhadores pendurados em cordas no prédio diante da minha janela. Eles lavam as pastilhas do imóvel. O ar está seco e a água me alegra. O vento traz o spray até a minha vidraça, e penso que seria ótimo abri-la, deixar a chuva entrar na biblioteca. Mas não. A biblioteca é o único jardim que não precisamos irrigar. Um jardim que cultiva o seu próprio jardineiro.

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Um daqueles homens pendurados em cordas agora divide sua atenção entre o trabalho e as muitas moças de biquíni que se esticam ao sol, na piscina do condomínio vizinho. O homem se balança no céu e canta, enfeitiçado pela nudez das bundas que se perfilam lá embaixo, como se postas à disposição de sua musa particular. Ele está feliz, neste exato momento está feliz, e gostaria que as moças soubessem disso. É por isso que o homem na corda canta tão alto, sem nem sequer se dar conta da pichação que seu jato d’água quente aos poucos vai apagando das pastilhas do prédio: NADA MUDOU.

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Mas para que serve um cronista brasileiro, afinal? Que necessidade tem ele de escrever sem parar sobre as rotinas deste país de fábula, onde tudo parece sempre tão igual, tão imóvel, como se suspenso no ar viciado da História? Nenhuma! Bastaria aos nossos editores que republicassem um punhado de textos antigos, de cronistas anteriores a nós, e possivelmente melhores. O problema estaria resolvido sem que ninguém percebesse o truque. Por exemplo: tenho aqui um volume de crônicas do Padre Lopes Gama, o Carapuceiro, cronista seminal do Recife. De uma página qualquer pinço esta frase, de novembro de 1832: “Medicina e política são duas ciências sobre as quais todo mundo dá a sua penada”. Muito bem. Quase dois séculos depois, a citação ainda nos diz respeito. Estamos há um ano e meio morrendo sob a administração de bandidos mentirosos que o velho monge beneditino, num santo lampejo de desprezo e iluminação, chamaria de “mezinheiros homicidas”. Há descrição mais adequada?

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Mas peço permissão para reproduzir aqui outro trecho da lavra do padre, este apenas um pouco mais longo, publicado em outubro de 1839. Vale: “É de advertir que o furtar acompanha por via de regra o mentir; por outra, que a mentira anda quase sempre na garupa do furto (…); logo a mentira é inseparável deste, e tanto melhor furtará quem melhor souber mentir”.

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E continua o Carapuceiro: “E haverá maré mais propícia, mais azada para furtar-se à vontade, do que seja uma sedição, uma sublevação, uma rusga? (…) Nessas desordens políticas, muitos, que eram uns gatos-pingados, ofereceram-se para defender a pátria, a ordem, a legalidade, porque como honrados cidadãos nunca poderão simpatizar com a anarquia. E acabado o fandango, estão ricos, senhores de prédios, dando dinheiros a prêmio e mangando no mundo, e mais nos tolos, que acreditaram na sinceridade do seu patriotismo. Nanja eu”.

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É por essas e outras que, aos cronistas de hoje, só lhes resta arrematar: nanja nós! Chega de mentiras!

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