Sobre a burrice

Era muito comum, quando criança, revidar um xingamento repetindo a palavra e acrescentando um “é você” no final. Tipo: me chamavam de burro e eu: “burro é você” (ainda tinha a versão filosófica, “burro é quem me chama”, que depois ganhou poesia: “burro é quem me chama / abre a porta e cai na lama / que o diabo te espera embaixo da cama / com um cacho de banana”). Mas eu vou ficar só na primeira formulação, a mais simples, até porque não alcanço hermenêutica capaz de explicar um diabo com um cacho de banana embaixo da minha cama. Pelo jeito continuo burro.

Daí esses dias eu vi na internet: “gente burra é igual gente inteligente. Só que é burra”. Ora, eu ri. É divertido porque é claro que consideramos estar do lado inteligente da força, afinal até entendemos a piada e rapidamente nos vêm à cabeça pessoas que consideramos burras porque discordam de nós e não enxergam a verdade tão evidente dos fatos, da vida, do mundo, que eu, inteligente que sou, enxergo, assim como todos aqueles que pensam igual a mim. A gente ri porque se julga do lado dos inteligentes e também porque se vinga daquelas antas que acham que são inteligentes, mas na verdade são burras, mesmo achando que são inteligentes e que nós, que somos inteligentes, é que passamos por burros. Entendeu? Nem eu.

Nas colunas anteriores eu andei disfarçando minha burrice citando Freud, Schopenhauer, Lacan e mais um monte de gente inteligente. Hoje só estou citando memes. Lá vai outro: “Quando você morre, quem fica triste são os outros, afinal você não sabe que morreu; é a mesma coisa quando você é burro”. O original falava em idiota, mas eu pus burro aqui para não nos perdermos no raciocínio (menosprezei-nos).

Dentro da minha burrice, vou arriscar dar a minha versão sobre o que é ser inteligente e, por oposição, o que é ser burro. É estranha a ideia de um burro querendo explicar o que é a inteligência, mas, como sou ficcionista e já criei personagem médico sem que eu fosse médico, bailarino sem que eu fosse bailarino, mulher sem que eu fosse mulher, por que não posso imaginar o que é ser inteligente, mesmo sendo burro?

Costumamos, talvez uma herança da escola tradicional, associar o burro àquele que não decorou um conteúdo, não fixou uma informação. Sete-veiz-quatro vinte e quatro!? Burro. Duarte Coelho donatário da Capitania de São Vicente!? Burro. Sombrancelha!? Burro.

Se alguma informação me faz falta, eu a procuro no Google; a informação, isolada, pode pouco – é o tal saber de almanaque, saber dicionarizado que não dialoga com o verbete seguinte. A informação precisa deslizar, precisa puxar conversa com as informações que trazemos em nós para que consigam reforçar convicções, abalar convicções e, no cenário ideal, ampliar modos de ver o mundo. Se pegarmos um tema como o terraplanismo – e quejandos quetais –, e, digamos, nos encantarmos com a possibilidade de que a terra seja plana, eu não vou julgar ninguém por isso. Pelo menos não de cara. Pois é óbvio que a terra parece plana. Quantos não pensaram, na infância, que morávamos dentro do globo? Eu sim. Sempre parece que o mundo é do jeito que a gente vê, ouve, toca, lambe, cheira. Agora, se eu vou atrás de reforçar a minha percepção, só vou encontrar comunidades – ou bolhas – que condividem essa sensação de que a Terra é plana, e assim encho-me de informações que inflam, firmam e confirmam o que eu já estava propenso a pensar. Mas a burrice não é tanto – ou só – falta de um conhecimento específico, de uma informação. Desconfio que seja a falta de conexão e, ponto decisivo, está em quem faz de sua régua a medida para as convicções de todos – embora terraplanismo não me pareça uma questão de convicção, né?

Para que eu não fique só na citação de memes, trago aqui o Jorge Larrosa, autor de vários livros que pensam, entre outras coisas, educação e experiência. Ele fala sobre uma contemporaneidade avessa à abertura e à escuta, mesmo propensa a mergulhar no frenesi da informação. Aí, eu completo: informação para erguer barreiras de certeza que não confrontam uma posição já tomada, mas dão sustentação ao que já se pensa. É se encher do mais do mesmo. Voltando ao Larrosa, ele diz que o indivíduo contemporâneo se fecha à experiência porque:

“quer estar permanentemente excitado e já se tornou incapaz de silêncio. Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória, são também inimigas mortais da experiência” (Jorge Larrosa, em “Notas Sobre a Experiência”)

Então, o que vou dizer vai soar óbvio para alguns, estranho para outros: a dúvida, a hesitação, a lentidão, a capacidade de ouvir são grandes sinais de inteligência. Aquela inteligência capaz de saber tudo, de responder a todos prontamente, de expressar opinião contundente e taxativa, é uma das mais novas burrices.

Óbvio que, quando falo em dúvida, não é o titubeio para ver se sete vezes quatro seriam vinte e quatro ou vinte e oito. É a hesitação que faz com que você questione se as conexões entre as informações, que nos levam a ter determinada visão da vida, não podem estar apenas parcialmente sustentadas – ou nada sustentadas –, se não poderia haver alguma contribuição vinda da antítese, isto é, de um argumento oposto àquilo que pensamos. Duvidar, mettere in dubbio, como dizem os italianos, é, mesmo sem muito apego à etimologia, fazer com que encaremos o nosso duplo, o outro que habita em nós, e que nos constitui confrontando-nos inapelavelmente. Esse encontro nem sempre é fácil.

É comum, em sessões de psicanálise, o sujeito começar a falar a partir de suas queixas. E também é comum que comece a falar do outro, que o outro faz isso, que o outro faz aquilo, que o outro é assim e assado, que o outro é culpado de tudo. Leva um tempo – que às vezes nunca chega – para que esse sujeito se implique no processo, o que significa buscar em si mesmo a causa da queixa, os motivos para o desenvolvimento do sintoma etc. Quando o sujeito se implica – falei mais sobre esse verbo aqui –, ele se coloca em dúvida, ele busca ver a si mesmo como sujeito participante da rede de relações e se responsabiliza por isso.

Quando vejo a situação política do país, é evidente que tenho lado, fico exasperado com o “lado de lá” que, para mim, é inacreditável e non sense. Mas tento, tento mesmo, buscar pontos de vista que testem, que coloquem à prova as minhas convicções. Tem algo a ver com o método científico, que tanto admiro: se tenho uma hipótese, eu não posso ficar defendendo-a a todo custo. Ao contrário, eu preciso bater nela muito, preciso tentar ao máximo, com experiência e experimentos – que são coisas diferentes –, desmontá-la. Se ela sobreviver, há muitas chances de ser verdadeira, ainda que provisoriamente, pois preciso estar preparado para vê-la ruir. O duro é que, no fanatismo, para não ruir, agarramo-nos a tudo – como a fake news, por exemplo. Porque, se a certeza ruir mesmo, o fanático não está preparado para renovar seu ponto de vista. Sem o chão em que pisava, ele cai junto, surta violentamente ou se deprime. É o tal – e o tao – do “meu mundo desabou”.

Olha a sutileza que diferencia essas duas palavras: estático e extático. A primeira é a representante da imobilidade, a ausência de movimento, a negação de um deslocamento que nos tiraria de uma posição fixa. É a condição do fanático, de quem habita (habitar e hábito têm tudo a ver) a sua certeza, erguendo barreiras em torno dela.

A segunda palavra, com x, vem do êxtase, que quer dizer outra coisa. Esse prefixo “ex” está na origem de estranho, estrangeiro, experiência (experimente ser estrangeiro de si mesmo), extraordinário. É o que nos faz mudar, o que pode ser bom, mas, ao mesmo tempo, nos angustia, já que mudar tem a ver com incerteza, ao contrário do habitar, que nos conforta com seus hábitos.

Mas há alegria no êxtase. Veja, quase para encerrar, o que a Noemi Jaffe fala sobre essa palavra:

“Êxtase vem do grego existanai: deslocar, sair do lugar. Para os gregos, a ideia de felicidade é a de sair de si, ver-se como outro de si. ‘Estar fora de si’ é expressão perfeita para explicar esse sentimento. Ou seja, a grande alegria não tem nada a ver com o eu, mas com o outro”.

Uma hipótese perversa e triste: a burrice contemporânea, do eu que tudo sabe – só não sabe se entregar à falta – tem levado vantagem. O sujeito da dúvida fica acuado, às vezes é visto como fraco, mole, quando na verdade pode estar fazendo o mundo andar por meio da abertura para os deslocamentos, para uma mudança que inclua o outro que pensa de um jeito diferente do seu. Abre mais espaço para novas sínteses do que o sujeito que não admite antítese. E “a grande alegria não tem nada a ver com o eu, mas com o outro”. Esse outro, ouso, pode ser outra pessoa física, mas também o outro de si mesmo, capaz de nascer a cada encontro com a dúvida.

Enfim, só acho. Já fiquei meio em dúvida agora.

 

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