O grito da natureza

Ela se aproxima arrastando os pés, os cabelos crespos presos em um coque desgrenhado. A chuva já parou, mas ainda é possível ver goteiras em alguns pontos do terminal do Cabral. Quando ela pronuncia as primeiras sílabas do “Boa noite”, naquela característica entonação monótona de quem já disse a mesma coisa inúmeras vezes, o constrangimento entre os presentes se propaga.

Os olhares correm da mulher, trajando um conjunto de moletom surrado, para a pista de onde o Inter 2 deve surgir a qualquer minuto. Não há nada de novo sob o sol: Kelly tem filhos para sustentar, a situação é difícil, o dinheiro é pouco – quase nada. O roteiro já é conhecido do público: a penúria, as lágrimas, a vergonha. Sempre escuto, imersa em uma espécie de autoilusão na qual creio ser possível detectar exageros da narrativa, vícios do discurso que entreguem algo além do que está posto.

Mais do que a jornada de Kelly, é um aspecto muito particular de sua fala que me move, quase ao fim de seu discurso: “Ninguém quis me pagar um lanche”, declara em meio ao mal-estar que tenta conter ao se escorar em um dos arcos do tubo. É só comida – algo tão específico e necessário que me parece impiedoso lhe negar.

Embora alguns passageiros tenham lhe estendido pequenas notas, azuis e arroxeadas, negando-se a receber sua parte da barganha (pacotes de doce Fini e de paçoca), resolvo que posso tomar uma cerveja a menos durante a semana. “Vem, vou te comprar um lanche”, declaro já me dirigindo à lanchonete. Ela ergue os olhos da nota que segura acima da bolsa que contem as mercadorias: a euforia é tanta que ela quase me abraça, mas se contém. “Sério?”, questiona sorrindo.

Aquiesço e me movo para mais perto dela: “Não tenho dinheiro, mas um lanche eu posso pagar”. Ela se volta ao seu público, ainda atento – de olhos colados em nós – “Gente, eu consegui!”, comemora. Enquanto nos dirigimos à loja, vejo, com o canto do olho, o Inter 2 se mover em direção ao tubo. Chegar em casa vinte minutos antes não vai mudar muitas coisas na minha vida.

No caminho até a lanchonete, pergunto dos filhos: ela me conta que largou a casa em um sítio, que estão sem sabonete e os banhos são com sabão. Pode ser uma história verdadeira, e pode ser que tudo não passe de uma grande e elaborada mentira – honestamente, eu não me importo.

Já no balcão, Kelly sabe o que quer: “Pode ser o de frango?”, aponta para a estufa de vidro. “Quer pedir algo para beber?”. Ela opta por uma Fanta Uva, diz que pode até ser a menorzinha. Aponta para uma lata diminuta, que meus olhos não veem. Brinco que ela está enxergando bem, Kelly ri. As moças da lanchonete me observam com olhos estatelados, mas pode ser só pela cor do meu cabelo (sempre esqueço que as pessoas se abismam com isso). Peço uma Coca.

Enquanto acerto a conta, Kelly se senta nos degraus que levam à plataforma do ligeirão. Quando me viro para retornar ao ponto do Inter 2, vejo-a abocanhar o espetinho de frango frito com uma voracidade alegre. Desejo sorte, e uma boa noite. Não há muito mais que eu possa fazer.  Nos despedimos. As novas pessoas no tubo também me olham com espanto. “Deve ser só a cor do meu cabelo”, penso nos poucos segundo que um novo Inter 2, com assentos de sobra, leva para parar na plataforma.

 

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