Liberdade e leiberdade

Droga, não fui eu quem teve a sacada de descobrir o que ouvi e vi um tempo atrás. Sempre tem alguém que chega na frente. Como prêmio de consolação, vou falar sobre isso, e vamos ver se sai alguma coisa que preste.

Anagrama é diferente de palíndromo. O palíndromo é aquela palavra ou frase inteira que, lida de traz pra frente, continua sendo a mesma. E aí temos desde o clássico e singelo “ovo” até o rebuscado “socorram-me, subi no ônibus em Marrocos”. Não conheço as condições do transporte público marroquino, então não posso opinar sobre o desespero do autor da frase.

Anagrama, por sua vez, é uma palavra que, recombinadas as letras, formam outra palavra. José de Alencar sabia, por exemplo, que em sua Iracema estava inscrita a América.

Porém, há palavras que, lidas ao contrário, formam outra sem necessidade de misturar letras. É quase uma combinação de anagrama com palíndromo, o que poderia nos dar um bizarro anagrândromo. O termo, até onde sei, não existe. Mas ficou um monstrão bonitinho.

Tudo isso ainda me lembra aquela história engraçada dos tempos de Xou da Xuxa, quando, a sério ou por zoeira, as pessoas falavam que as músicas da rainha dos baixinhos, se ouvidas do avesso, conteriam mensagens do capeta.

Lá se foram cinco parágrafos e eu só enrolei, ainda não falei sobre o anagrândromo que escutei dia desses. Estávamos falando de liberdade e servidão quando o ouvi. E fui correndo escrever a palavra só para poder lê-la de traz para frente: “livres”. Ora, que palavra bonita, em nome da qual se fazem revoluções, guerras, especulações financeiras.

A essa altura, todo mundo aqui já leu “livres” ao contrário, não? A dupla com “servil”, então, dá pano pra mangas compridas. Como vou só especular, proponho várias mangas curtas – maneira mais bonita de dizer que vou atirar pra muitos lados sem atingir alvo algum.

Antes de tudo, acho que liberdade seria exercer o direito que tenho de me prender ao que eu quiser, não? Existe liberdade sem se prender a nada? É que prender parece palavra má, lembra grades, prisão, cadeia. Mas cadeia é também conjunto de elos que ligam uma coisa a outra. Se alguém me prende contra minha vontade, a liberdade acaba. Mas prender-se já indica colocar-se, por vontade própria, como parte de um elo que engata em outro, formando cadeia, que não é prisão, pelo menos não uma prisão compulsória.

Aí já vem o verso bem conhecido do Camões, naquele soneto sobre o amor. Entre outros, ele diz: “é querer estar preso por vontade”. Os dois extremos são problemáticos: ser preso a algo por vontade alheia e, do outro lado da linha, não se prender a nada. No meio disso, nem de um lado nem de outro, há sempre um olhar, um trejeito, uma conversa que me dá vontade de formar cadeia, de estabelecer um elo, de me prender. Há sempre uma atividade que me faz escolher um caminho, profissional ou não, ligar-me a ele sabendo que outras opções ficam para trás. As crianças ainda podem sonhar em ser astronautas e bombeiras, comissárias de bordo e professoras, só depois é que vão se dar conta de que, na prática, é muitas vezes “ou isso ou aquilo”, como alertava a Cecília Meireles. Há sim muitos “e isso e aquilo”, mas aí já é assunto de outra conversa.

Imagino a época dos casamentos por obrigação ou, ainda atual, a das profissões escolhidas pelos pais. Na outra ponta, na esteira do não se prender a nada, está a apatia pela falta de desejo que faz do sujeito um sujeito uarévãrrr, tô nem aí, tanto faz. Um tanto faz que nada faz. Um dos motivos das depressões atuais, acho que não é descabido afirmar, passa por essa falta de estabelecer laços com algo que afete de fato o sujeito, que o faça perseguir aquela linha do horizonte que nunca será alcançada, mas que tem o mérito de nos colocar em movimento, como dizia o Eduardo Galeano. Não à toa, depressão é buraco (as depressões nas pistas das estradas brasileiras podem facilmente nos lembrar disso). Os medicamentos, cada vez mais avançados, podem sim ser comemorados, desde que em algum momento o sujeito busque ressignificar o valor dos laços não só para o tecido social, mas para sua própria sobrevivência psíquica como um sujeito de desejos.

O discurso do capitalista espertamente entendeu essa parada, e fica oferecendo seus próprios medicamentos de consumo, que tampam o buraco mas estragam depressa, perdem a graça e estabelecem uma cadeia (nos dois sentidos) que aprisiona o sujeito a uma estrutura de repetição: a excitação da compra, o buraco, a excitação da mesma nova compra, o novo mesmo buraco. As toxicomanias são outro exemplo: sou livre para consumir drogas, afinal, meu corpo, minhas regras. Mas subitamente percebo que não consigo mais parar. Onde há liberdade, onde há servidão? É dentro desse paraíso de homens e mulheres livres que corremos o risco de cair em uma postura servil, tornando o sujeito paradoxalmente um objeto. Ser sujeito é sujeitar-se? Eis aí outro aparente oximoro. Costumamos falar de sujeito como alguém autônomo, o que pode aproximá-lo de “livre”. Sujeitar-se, por sua vez, é submeter-se, meter-se debaixo de alguma vontade maior. E essa vontade maior pode ser a do próprio desejo? A liberdade como sinônimo de querer tudo, de poder tudo e de ir atrás disso a todo custo traz mais problemas: há sempre um outro na relação, outro sujeito de desejos, com suas vontades querendo ser satisfeitas. Exercer essa liberdade desregrada pode aprisionar esse outro (e até a si mesmo). Se esse outro resolver lançar mão também de sua liberdade desregrada, voltaremos à época do tacape e resolveremos no braço, nas armas, no provérbio da farinha pouca, meu pirão primeiro. Entra em cena então outra dupla, muito comum na boca dos pais, esses atávicos conservadores: liberdade traz responsabilidade. Parece papo de véio (não consigo tirar esse acento, por mais que as normas ortográficas vigentes prescrevam isso), ou talvez eu esteja ficando véio mesmo. Mas responsabilidade, pense bem na palavra, implica uma capacidade de responder pelos atos da nossa liberdade, significa que o nosso desejo responde a uma lei de castração que, ao contrário do que se possa pensar, é fundamental para vivermos juntos. Os contratos, sobretudo os não escritos, quando funcionam, mostram que temos a capacidade de refrear ou adiar o gozo (que seria o desejo desregrado, sem limites), porque a palavra é a grande mediadora das relações – mesmo quando não ditas, estão inscritas em nós. É ela que nos limita, que nos castra, que instaura (podendo até prescindir das autoridades repressivas) o exercício da liberdade desde que saibamos responder por ela, ou seja, desde que tenhamos responsabilidade.

Ser servil à Lei da palavra é a melhor maneira que eu conheço para sermos livres. É uma espécie de leiberdade, palavra que me surgiu agora no finalzinho, quando fui salvar o arquivo e digitei “liberdade” errado.


*** Gentes boas, obrigado pelas leituras. O sujeito aqui vai se sujeitar a umas férias do Plural nessa passagem de ano. Se a chefia me autorizar, volto em fevereiro. Boas promessas de Ano Novo a todo mundo.

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