O amor não sabe morrer

– Ela se separou, diz a mulher ao meu lado.

Tem os lábios apertados pelo prazer da fofoca. É uma senhora que sempre encontro em eventos literários.

– Quem?

Cara de peralta, ela aponta a outra com a mão no colo. Faço um discreto sim com a cabeça, não quero atrapalhar a leitura do poeta lá na frente.
Estamos no gramado de uma quinta, rodeados de árvores. Sentados em cadeiras de plástico, formamos um semicírculo diante do palco, que se resume a um banco de jardim e um microfone. O poeta da vez é daqueles que dão um tom “profundo” à leitura, como se fossem profetas. A presunção de superioridade da poesia me constrange, mas o poema por trás da voz é bom.

– Crônica de uma separação anunciada, insiste a senhora.

Não digo nada. Ela não consegue se concentrar nestes saraus. No entanto não falta a um. Adora ficar cercada de escritores. Busca neles algo sublime que idealizou um dia, em leituras de colégio. E frustra-se, sempre, no contato com autores que falam em sêmen e miséria e se matam por um lugar ao sol.

– Esse homem vem ler caindo de bêbado, me disse um dia, enojada.

– Baudelaire era putanheiro e drogado, estive perto de responder. Mas não tenho vontade de perder tempo com esta senhora.

O poeta profundo recebe aplausos. Sai devagar do palco, meio ofendido. Um duo de jazz entra em cena. Aproveito a descontração momentânea para passar os olhos pela mulher que se separou. Está sentada perto de nós. É uma poeta com quem já conversei algumas vezes, deve ter uns quarenta anos. Não lembro seu nome. Seus olhos são doces, luminosos, a voz é suave. Uma doçura que tem qualquer coisa de religiosa, doçura com fundo gélido de abadessa. Veio com um discreto vestido florido, sobre o qual vestiu um casaquinho preto. Não parece inquieta nem triste, ouve a música com delicada atenção. Talvez a separação tenha virado rotina para ela. Não há casais que se separam quatro, cinco vezes, até se enjoarem do frisson da hemorragia?

Alguém fala com a minha vizinha de sarau, ela dá uma gargalhada. Os músicos olham.

O amor não sabe morrer, escrevi um dia num poema exagerado e triste, que me esforcei em vão para esquecer.

A abadessa se ajeita na cadeira, corrige a postura.

Quarenta anos, penso, a capacidade de se iludir começa a declinar.

O duo encerra o tema. É a vez de uma jovem poeta de longos cabelos vermelhos, vestido negro e botas de milico. Lê com magoada rebeldia, diz que devíamos ser de aço. Nós a aplaudimos com o excessivo entusiasmo de pais no teatro da escola.

Agora nos reunimos em torno de uma mesa cheia de taças de vinho. O clima pesado dos poemas foi arejado pela noite agradável ao ar livre, os convidados bebem sem ansiedade. Quando vejo, estou ao lado da abadessa. Ela me diz qualquer coisa. Quero saber como ela anda.

– Eles viajaram. Estou há semanas sozinha. Trabalhando muito.

– Às vezes é bom ficar sozinho, digo.

Seu sorriso é a flor branca do jardim da abadia. Pode ser que o amor tenha mesmo acabado, ou nunca a tenha alcançado. Pode ser também que logo mais esteja de joelhos, devastada, na sala vazia.

Batem no meu ombro. É o poeta surrealista.

– Gostei da sua crônica! Aquela sobre desilusão.

– Todas são mais ou menos sobre…

– A que tinha o golfinho. Aquela imagem do golfinho no deserto. Muito boa!

Agradeço, precavido. O homem é obcecado por sua carreira. Costuma elogiar quem lhe pode ser útil. Fareja oportunidades, trinca os dentes quando fala de si. Vive a literatura no campo aberto das vaidades e rancores. Devia descansar disso. E não escrever tudo a partir de fora, um dia vai explodir.

Me puxam pelo braço, sou apresentado ao velho grande poeta que nunca chegou a ficar famoso. Escreve bem demais para um homem ainda vivo, ninguém perdoa. Parabenizo-o pela obra. Ele faz um esgar de desgosto.

– Já estou a cansar-me disso.

Os outros se indignam, protetores. O contrabaixista, magro e fleumático, diz que ele “está com a bezana”. Não entendo, mas rio com eles. Estou cansado. A literatura fora dos livros me cansa rápido.

Devagar, me despeço de um, de outro. Logo depois, a caminho do carro, vejo a abadessa na penumbra, ao lado de um Buda de pedra. Ela não me vê. Fala baixo ao telefone, abafando as palavras como se suplicasse sensatez. O marido? Um amante, ansioso por dar livre curso ao desejo reprimido? Ela caminha, some atrás do Buda sombrio.

Mergulho no escuro de uma trilha, a brisa me traz um cheiro bom de bosta de vaca e resina de pinheiros. O céu está quase limpo, as estrelas se insinuam por uma gaze de névoa. Chego ao carro, me sento ao volante. Na primeira separação, eu tinha trinta e poucos anos. Minha garganta se fechava cada dia mais, às vezes sentia um gosto de sangue no fundo da boca. Sangue ou terra, alguma coisa de que eu era feito e me esquecera. Certa noite vi meu reflexo no prato de sopa, um narciso perdido entre batatas e croûtons… Lamentava nossos beijos secos, numa inconformada nostalgia de nós dois. Escovava os dentes, desligava a luz, enquanto um deus desabava silenciosamente sobre mim.

E agora… Agora aquilo tudo é pouco mais que nada. A luz de uma casa que vi ao longe, numa estrada noturna. A lembrança de uma dor, sem a dor da lembrança.

Ligo o carro, avanço pelas ruas desertas. A cidade dorme. La vida es sueño, afirmou Calderón de La Barca. Mas como dói, disse Drummond de passagem.

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