Buraco no teto

O Casa da Índia é um desses pequenos restaurantes portugueses tradicionais que sobreviveram ao boom turístico de Lisboa. Está ali, na Rua do Loreto, há quase um século. Sua fachada atual, de vidro com esquadrias toscas de alumínio, não atrai os turistas à hora do almoço. Os que se aproximam para olhar seu interior logo se afastam. É que nessa hora os trabalhadores de serviços ocupam a velha tasca para comer, num alarido de feira popular, um autêntico bitoque ou bacalhau com todos, a menos de dez euros.  

Escolhi o Casa da Índia para o encontro com o velho poeta pensando em sua dupla característica de português tradicionalista e burguês arruinado. Ficará, talvez, um pouco incomodado por estar entre homens de calças sujas de fuligem, mas imagino que a comida e o vinho da casa, com sabor e preço do passado, recobrarão seu ânimo saudosista. Quem sabe até veja a ilustração singela das caravelas na parede dos fundos e me dê informações preciosas sobre a célebre Casa da Índia do século XVI, em que eram administradas, desde o Terreiro do Paço, as pilhagens feitas pelos navegadores mundo afora.

Sento-me a uma mesinha e aguardo o amigo. Para minha surpresa, chega de bengala, apetrecho que até hoje nunca o vi usar. Senta-se à minha frente, me estende a mão, suspira. Apoia a bengala na parede.

– É difícil envelhecer em Lisboa, diz.

Aguardo a explicação do lamento; penso nas ladeiras, nas calçadas estreitas e cheias de turistas, na solidão a que muitos velhos são relegados aqui. Mas, ao seu estilo elíptico, ele não diz mais nada sobre o assunto.

Não faz tampouco qualquer comentário sobre o restaurante, embora, ao recusar o cardápio como se já o conhecesse, não hesite em pedir iscas de porco e uma jarra de vinho da casa. Escolho favas e digo-lhe que dividirei com ele a bebida.

Em meio ao burburinho dos clientes e aos gritos dos garçons para a cozinha, iniciamos então uma dessas conversas pontuadas de silêncio que costumamos ter.

O poeta me fala dos seus dissabores com uma pequena editora que “escondeu” seu último livro. Ela o publicou, fez um lançamento, ao qual ele não foi, mas não o distribuiu devidamente para as livrarias.

– São agora todos uns aldrabões.

Ele bebe um gole de vinho e me olha de relance. Ao redor dos lábios cansados, a barba e o bigode brancos estão amarelados de fumo barato.

– Mas por que você não foi ao lançamento?, pergunto.

– Isso não é para mim. É muito possidônio.

Enquanto o escuto, como de costume, faço traduções simultâneas. Possidônio – pretensioso. Aldrabão – o que era mesmo? Trapaceiro?

Lembro-me de ter visto na casa dele uma foto esverdeada. Era o lançamento de um livro seu, há cerca de quarenta anos. O poeta estava ao lado de dois ou três autores já consagrados, todos jovens de esquerda pós-revolucionários. Miravam a câmera com firmeza; no gume dos olhos, um orgulho político e intelectual ainda intocado pela desilusão.

Entre os anos setenta e oitenta, meu amigo obteve algum reconhecimento da crítica em Portugal, mas, por razões que desconheço, jamais conquistou os favores da mídia. Me disse certa vez que eles o ignoraram porque “não quis entrar no jogo”, pois jamais deixaria que subjugassem seu espírito livre. Mas não creio que seja verdade, não de todo. Suspeito que, por trás da rebeldia e do desapego que exibe nos momentos de maior exaltação, esconde-se a mágoa de um menino que não foi convidado a jogar.

Quero saber como anda seu último livro, do qual me falou ao telefone com entusiasmo, dias atrás. Ele me diz, aborrecido, que não tem conseguido escrever em casa. A velha geladeira anda fazendo um barulho insuportável. Uma das janelas da sala entortou, entra um vento frio pelas fendas.

– Ainda por cima, caiu-me um bocado do teto.

Não preciso perguntar-lhe, sei que se refere à placa de gesso que esconde a laje do teto. Instalam essas placas nas casas antigas para esconder o bolor com que a umidade e o tempo desenham os mapas informes da decrepitude.

O velho poeta mora numa casa senhorial herdada. Por fora, ainda que um pouco descorada, ela remete à abastança da época em que seu pai amealhava fortunas no mercado corticeiro. Mas quando se sobe a rangente escada de madeira, entra-se num mundo de livros, quadros, poltronas ressequidas de couro, castiçais de prata e móveis torneados de madeira nobre que o pó e a desordem embaralham num único, imóvel sonho de grandeza desfeita.

Meu amigo não soube gerir sua herança. Ou melhor, não quis. Vive de migalhas, parece até comprazer-se com o declínio dos valores de seu pai, embora não saiba abandoná-los…

Comemos nossas refeições em silêncio. Ele não reclama das iscas, mas também não elogia.

À hora do café, o poeta tira do bolso um dos poemas do livro que está escrevendo. Começa a ler. Envolto pelo vozerio e pelo cheiro dos assados na grelha, concentro minha atenção em suas palavras. Os gritos dos garçons pouco a pouco se deslocam para o limbo e, no espaço luminoso que surge entre nós, seus versos vão rompendo camadas e camadas de vida precária. Aos poucos me devolvem, através de metáforas obscuramente agudas, a um lugar pleno, calmo, liberto de tudo que parece necessário. É como se o poema abrisse um outro buraco no teto.

Quando termina a leitura, mal olha para minha reação de pasmo contido. Dobra o papel, pede a conta. Anda muito sozinho com suas obsessões literárias, como se tudo que viesse de fora fossem aplausos de foca ou cuspe de bárbaros.

– Belíssimo, digo ainda assim.

Ele me agradece com ligeira amargura.

Descemos juntos até a Praça Camões. Me despeço, entro no elétrico 28. O veículo avança, contorna a praça. Ainda vejo meu amigo, parado no meio do remoinho de passantes apressados. A bengala pendurada no braço, relê o poema, ruminando os versos como quem busca algo que, a despeito de sua profunda entrega, eternamente lhe escapa.

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