Aniversário: deixar de contá-los é pior

Tenho uma mania, melhor, muitas manias. Relato uma: contar, se não tudo, quase tudo que faço. Não é contar os causos a respeito de feitos e desfeitos, sonhos e esperanças, mas sim contar numericamente as coisas que estou fazendo.

Ridículo? Ainda bem que não faço em voz alta.

Dia desses me peguei contando o número de gomos das mexericas que chupava. Na terceira, já concluindo que todas têm números pares, mais precisamente dez, me aparece uma quarta com número ímpar de gomos.

Qual seria a utilidade disto? Nenhuma. Talvez no máximo seria utilizada para escrever uma crônica dizendo que “cientificamente” após chupar n mexericas concluí que todas têm número par de gomos. Como não cheguei a esta conclusão, escrevo a crônica comentando a mania.

Não sei de onde e nem como a adquiri. Desconfio que começou quando, já adulto, fui aprender a nadar. Dizia a professora: para começar nade 10 piscinas livres, depois 6 crawl, 10 de costas, 5 peito, e assim por 50 minutos ela ordenando e eu fazendo e contando.

De repente me peguei contando número de quadras que caminhava, número de passos que dava, degraus de escadas que subia e parado na rua me peguei contando, várias vezes, o número de andares de determinados prédios em construção e assim fui piorando.

Se estou caminhando – como exercício – e quero saber quantos quilômetros andei: começo a contar o número de passos. Sei quantos passos preciso dar para caminhar 100 metros. Trenei observando e contando.

Por mais de uma vez ao andar em pistas com marcas no chão informando 100 metros, 200 metros, 300 metros, comecei a contar quantos passos necessitava para caminhar 100 metros. Dependendo da largura do passo concluí que necessitava dar cerca de 120 para atingir a marca de 100 metros.

A partir daí, se saio a caminhar na rua ou em alguma pista que não tem o registro de metros, começo a contar o número de passos e no final tenho a ideia de quantos metros andei.

Seria loucura – e sei por que já comecei e não dei conta – contar o número de passos desde o momento em que me levanto até o de deitar.

Alguém que até aqui leu já deve ter pensado: por que este idiota não baixa um aplicativo no celular para saber o quanto andou durante o dia.

Resisto ao aplicativo. Resisto porque contar virou um método para encher a cabeça e não ter que pensar na desgraceira que está virando a vida de muita gente, a minha e o Brasil. Não há como viver bem se os Outros vivem mal.

Contar dá à cabeça algo a fazer. Às vezes, falha.

Estou firme contanto os passos ou o número de piscinas que nado, ou o número de gomos de mexerica, enquanto minha cabeça é involuntariamente invadida por pensamentos estranhos. Me perco, erro a contagem. Quando isto ocorre, se nadando ou caminhando, me imponho uma autopunição: reinicio ou retomo a contagem em número inferior ao que presumivelmente já tinha feito.

Mas a mania de contar não é só no sentido crescente, todos os dias, conto também em ordem decrescente. No final do dia, parado na esquina esperando o semáforo abrir conto, menos um.

O homem do meu lado perguntou: menos um o quê? Nada, estou falando sozinho, respondi.

O menos um é menos um dia de governo do Bolsonaro. Não podia dizer isto a ele… Sei lá, poderia ser um bolsonarista, destes que andam armados. São tantos.

Tive medo de ter o corpo perfurado, como muitos tiveram na favela do Jacarezinho (Rio de Janeiro), ou um aqui no Largo da Ordem (Curitiba).

Imaginei – sei que talvez não ouvisse – alguém sobre meu corpo contando: “um, dois, três, ih! É muito furo, o cara descarregou a arma”.

O envelhecer gera muitas coisas, acima de tudo, manias. E, com o avançar da idade, ninguém precisa de mania para começar a contar as dores: quase todos os dias há uma dor nova em alguma parte do corpo, diferente, e que pode durar algumas horas, dias, semanas… desaparecer ou ser substituída por outra, ou ser definitiva.

Com dor ou sem dor, com mania ou sem mania, o que quero mesmo é continuar a sonhar e contar meus aniversários, até porque deixar de sonhar e de contá-los é pior.

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