Boi desgarrado

Já anoitecia quando descemos do ônibus no trevo de Garuva. Pegamos nossas mochilas e fomos à estrada pedir carona para a praia. Estávamos com pressa porque logo ficaria escuro, os carros não parariam mais. Acendemos nossos cigarros e nos entreolhamos à margem do asfalto sombrio. Sua bata indiana, seus cabelos fartos e bem cuidados de hippie universitária esvoaçavam a cada caminhão que passava, dando a impressão de que ela, tão magra, sairia voando…

Era 1982, nos tempos finais da ditadura miliar. Poucas cenas permanecem tão vivas em minha memória. Não há nenhum motivo especial para isso, outras coisas que ocorreram naquela época conturbada deveriam ter me marcado muito mais. Mas há momentos assim, destacam-se, sem causa aparente, da sucessão obscura dos anos. A cabeça de uma tartaruga que surge na superfície de um lago. Fica-se com o estranhamento de sua aparição. E o mistério do corpo submerso.

Ela era uma atriz com quem eu havia contracenado num psicodélico Édipo Rei, em que Édipo furava os olhos ao som de “O Superman”, de Laurie Anderson. Depois da última apresentação da temporada, nos beijamos num bar ao lado do Teatro Guaíra. Achei sua língua um pouco frouxa demais, mas me deixei seduzir pela elegância do rosto anguloso. Fomos para o meu quarto de pensão, a duas quadras do teatro. E no dia seguinte combinamos a viagem.

Ali no trevo, não demorou muito para que uma picape parasse e nos desse carona.

– Vocês têm que se ajeitar aí, disse o motorista, apontando para a carroceria com o polegar.

O homem estava carregando uma máquina grande embrulhada em lona. Sobrava um pequeno espaço na traseira, onde nos ajeitamos sorrindo, satisfeitos com a pequena aventura.

Rodamos um tempo pelo asfalto, depois entramos na interminável estradinha de terra que levava a Itapoá. A céu aberto, sentados no piso duro da carroceria, tínhamos que nos segurar com força nas laterais para não sair voando a cada solavanco. Começou a fazer frio. Vestimos nossos casacos. Tirei uma garrafinha de cachaça da mochila e bebemos, cuidando para não machucar os dentes. A estrada fugia atrás do carro, vagamente iluminada pelas lanternas vermelhas, e sumia como o rastro de um navio noturno. Por entre as árvores negras que passavam voando nos dois lados do caminho, o céu era uma barra límpida de gelo azul constelada de borbulhas cristalinas. Quando subimos um morro alto, vimos a lua.

– Tão bonita que magoa, ela disse.

Cansada do desconforto, deitou-se como pôde, ajeitando a cabeça no meu colo. Beijei-a, devagar. Enfiei a mão sob a bata, apertei de leve os seios livres. Brinquei com os mamilos, que já estavam duros de frio. Desci os dedos como esquiadores pela encosta do ventre até chegar ao fundo do vale. Seus olhos se fecharam numa aflição magnífica. Ela se contorceu, enfiou o rosto em minha barriga e soprou um grito abafado.

Fiquei um tempo observando-a. Deixava-se sacudir pelo carro, semiadormecida. Eu não conhecia sua família, sua casa, mal sabia o que pensava sobre a vida. Nossos corpos se tocavam na perfeita ignorância do passado, confiantes no interesse comum pelo teatro, por Sófocles, Artaud, pela urgência de um grito. A juventude doía, era bom estarmos juntos ao vento, naquela noite aberta de um país encolhido pela violência.

O cano do escapamento roncava abaixo de nós. Alguns carros passavam em sentido contrário, iluminando brevemente o túnel de árvores. Me lembrei de que ela havia dito que precisava driblar seu pai para poder viajar. Perguntei o que havia dito a ele.

– Que fui pra casa da Joana. Sempre vou pra casa da Joana.

– E se eles ligarem pra ela?

– Ela diz que eu fui dar uma volta. Depois me avisa e eu ligo pra eles.

– Mas como vai te avisar nesse fim de mundo?

Ela sorriu.

– Não faço a mínima ideia.

As árvores rarearam, sumiram. Atravessávamos uma fazenda de gado. O cheiro de pasto e bosta se misturava ao aroma suavemente ácido da saliva da garota, de cuja boca me servia a intervalos regulares.

– Me disseram que você foi preso pelo DOPS, ela disse de repente.

Fiz um sim hesitante com a cabeça, temendo o que viria a seguir.

– Eles te maltrataram?

– Um pouco. Já não colocam mais as pessoas no pau de arara.

– Você acha que a ditadura vai acabar? Ou é o país que vai acabar.

Pensei na minha família, sentada diante da tevê para engolir sua ração diária de mentiras oficiais. Na massa de pessoas “humildes e trabalhadoras” que se deixava levar para o abismo entoando hinos patrióticos, negociando a atenção de Deus. Seria possível despertar tanta gente daquele transe induzido, daquele sonambulismo fatal? Até que ponto ficaríamos agarrados ao lombo da morte, como crias da morte?

A picape parou. Havia um boi desgarrado no meio da estrada. Os faróis isolavam na noite seu corpo de mármore, a coroa dos chifres erguendo-se alta acima dos olhos inflexíveis. Um filete de sangue cruzava-lhe o peito largo.

Quando chegamos em frente ao mar, dei uns tapinhas no teto da cabine. O motorista freou, saltamos da carroceria e agradecemos pela carona.

– Tomem cuidado, meninos!, disse ele.

Arrancou, e só então vimos o adesivo colado na basculante traseira:

AME-O OU DEIXE-O.

Ela me disse qualquer coisa irônica sobre o paternalismo dos imbecis. Depois me pegou pelas mãos, arrastou-me para a praia. Ao clarão da lua, a imensa massa de água rugia à nossa frente. Tiramos os sapatos. Afundando os pés na areia, bebemos mais um gole de cachaça. Ela me contou que estava se preparando para fazer Antígona, com outro grupo de teatro. Mordiscou minha orelha, passou a mão em minha bunda e caminhou em direção ao mar. Com os braços abertos, declamou para o branco espectro das ondas:

“Por isso, prever o destino que me espera
é uma dor sem importância. Se tivesse
de consentir em que ao cadáver de um dos filhos
de minha mãe fosse negada a sepultura,
então eu sofreria, mas não sofro agora.
Se te pareço hoje insensata por agir
dessa maneira, é como se eu fosse acusada
de insensatez pelo maior dos insensatos.”

E atirou-se de roupa no mar, deixando no ar um grito agudo que atravessaria os anos. Este grito que ouço agora.

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