O padre, os vereadores e o cachorro

Seu Joaquim sempre levava uma bainha de couro presa ao cinto e dentro um canivete de fina lâmina, afiada e cortante. Com ele, também, sempre, um indefectível guarda chuva. Andava a pé de sítio em sítio castrando porcos e porcas. Necessário deixar claro a questão de gênero, pois o processo cirúrgico é diferente.

Não sei se marcava as datas das visitas ou saía do seu sítio no dia que lhe desse na telha. Para nós, crianças, a sua chegada era sempre inesperada.

Para mim, seu Joaquim era um velho (assim mesmo que dizíamos), mas, hoje, pensando e rememorando, tenho a impressão de que deveria ter entre 45 e 50 anos de idade.

Ele não sabia – ou talvez até soubesse – que sua figura era usada para aterrorizar as crianças. Às vezes algum de nós, após fazer alguma “arte” era ameaçado: vou chamar o seu Joaquim pra te capar.

Gostávamos dele porque sempre vinha com alguma brincadeira ou pegadinha. Uma das contumazes pegadinhas era fazer a pergunta, muitas vezes repetida: por que o cachorro entra na igreja?

No começo não sabíamos, mas depois decoramos a resposta: porque a porta tá aberta. Em seguida perguntava por que o cachorro sai da igreja?

Em Rolândia, na paróquia São José, hoje igreja Matriz, havia o padre, José Herions, que contavam – nunca vi – que quando ele enxergava um cachorro dentro da igreja, chegava até a interromper a missa para aos gritos expulsá-lo e, se o alcançasse, colocava-o para fora aos ponta pés.

Lembrei-me destas duas histórias no momento seguinte ao fato de um grupo de homens e mulheres, em protesto justo contra o racismo e a xenofobia, entraram, aqui em Curitiba, na igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.

Estes homens e mulheres, de maioria preta, participavam de um protesto na frente da igreja. Cobravam justiça pelo assassinato de dois homens – Moïse Kabagambe e Durval Teófilo Filho – ambos pretos. Pediam justiça e um basta aos crimes raciais, alguns deles bárbaros, que perpetrados reiteradamente.

Num dado momento, após o final de uma missa, um grupo destes militantes entrou na igreja e o fez – lembrando o seu Joaquim – porque a porta estava aberta. Ao entrar não romperam nenhuma regra de religiosidade nem de afronta à fé e a espiritualidade, respeitaram o simbolismo do local e demonstram respeito a Deus.

Em um momento de indignação e contra o desrespeito ao sagrado, o próprio Jesus Cristo entrou no templo e de lá expulsou os mercadores.

Ao contrário, do que os hipócritas e cretinos disseminaram, os homens e mulheres que entraram na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos não expulsou e tampouco afrontaram alguém. Dentro da igreja a seus modos, fizeram suas pregações e orações a favor da justiça, da paz, da fraternidade e do valor da vida. Aos seus modos e aos seus jeitos, num curto espaço de tempo – cerca de oito minutos –, também pediram proteção a Deus.

Feito o ato eclesiástico, assim como entraram, saíram e a igreja permaneceu como a encontraram, intacta. Nem um ser humano, imagem ou espaço de religiosidade foi afrontado.

Mas Curitiba é uma cidade que tem um povo estranho: entrar na igreja é uma afronta, benzer armas não.

O prefeito Rafael Greca mandou benzer armas – pouca gente reclamou – talvez com o objetivo de usá-las para dar o tiro de misericórdia em algum moribundo, na maioria das vezes um preto.

Tiro de misericórdia, escrevo, porque muitas vezes as vítimas já foram, não só torturados pela pobreza, exclusão e racismo, mas também fisicamente e, à beira da morte, uma arma abençoada é disparada. Talvez assim o coração e a alma misericordiosa do Greca, imagina, não levará nenhuma culpa ao juízo final. Afinal a pistola ou o fuzil foram benzidos.

Nós de Curitiba somos vítimas de três déspotas, Rafael Greca, o esclarecido, ou outros dois Ratinho Jr – há que se saber por que o apelido do pai e do filho – e o energúmeno que ocupa a presidência. Todos fascistas.

Os três caíram sobre o fato ocorrido na igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos como baratas sobre o mel. As baratas fazem isso pela doçura do mel e pelo prazer de se alimentarem.

Os três também o fizeram pelo prazer. Duplo, quem sabe triplo: o deleite de praticarem seu racismo – sem explicitar – ao pedirem investigações sobre o que chamam de crime; a exploração política para melhor se qualificarem para a disputa eleitoral; e, ainda, afastar da vida pública um preto, que, de acordo com eles, não sabe o seu lugar.

Importante ainda a destacar é que, depois dos fatos, o padre não reclamou, o que significa que ele relevou ou entendeu que, por não haver danos e tampouco desrespeito à religiosidade, não precisava tornar público o ocorrido. Mais tarde, inclusive, colocou-se contra a cassação do vereador Renato Freitas.

O fato veio à tona e se tornou relevante quando um dos vereadores fascistas de Curitiba revelou o corrido com o objetivo de obter vantagens políticas e eleitorais e punir aquele preto que não sabe seu lugar.

A última pergunta do seu Joaquim: por que o cachorro sai da igreja?

Na nossa afoiteza infantil resposta era sempre: porque a porta tá aberta. Ele ria e dizia: erraram, o cachorro sai da igreja porque entrou.

No caso do protesto de Curitiba, assim como Cristo no templo, entraram porque a porta estava aberta e pela mesma porta aberta saíram. Cristo quebrou e derrubou mesas, estandes e expulsou mercadores e por fazer isso na época foi chamado de criminoso.

Os que protestaram em Curitiba nada quebraram e também são chamados de criminosos. Ambos assim são tratados por questões políticas e a Renato soma-se a questão racial.

A maioria absoluta dos vereadores expulsaram o Renato Freitas da vida pública como o padre José expulsava os cachorros da igreja, a pontapés.

Será que alguns dos vereadores não gostariam de andar como seu Joaquim, com um canivete de fina lâmina, afiada e cortante para castrar – até fisicamente e com mais afoiteza, se pretas – as pessoas que lutam contra o racismo e a favor da igualdade racial?

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