Nítido abismo

Sentado ao lado de minha mãe no ônibus, eu não compreendia nada. Não sabia para onde íamos, por que tinha vindo com ela ou o que a fazia sofrer. Ela apertava meu ombro, olhando por cima de mim para a cidade, a fim de esconder dos outros o rosto desfeito pela dor. Suas lágrimas, porém, caíam em meu colo e me deixavam confuso. Era como se, de um céu sempre azul, surgissem inexplicáveis gotas de chuva. Eu segurava firme o cavalinho que ela me dera ainda há pouco, talvez com medo de que pudesse desaparecer naquela surpreendente manifestação de fragilidade do nume que me protegia. Mas, aos poucos, a mãe se acalmou. Ficou de olhos e boca abertos, num pasmo que beirava a idiotia, imóvel, entregue ao balanço do ônibus como um enorme bebê rosado.

O cavalinho não sumiu. Diante do meu olhar sonolento, a paisagem urbana começou a evanescer. Os braços dela me envolveram, e o calor de seu corpo permitiu que me abandonasse de vez ao nítido abismo dos sonhos infantis.

Quando acordei, estava em uma cama estranha, num quarto que nunca tinha visto. A luz do sol se estendia pelo assoalho encerado, vibrava nas cortinas brancas. Onde ela estava? Um enorme urso de pelúcia marrom me olhou de cima do armário. Vi meus tênis ao lado de outros, junto à porta. Apesar de surpreso, fiquei tranquilo. Havia ali uma ordem e uma paz que me acolhiam. Me levantei, segui descalço pelo corredor da casa, sem ouvir meus passos sobre a passadeira de linóleo. Na cozinha, entre azulejos verde-água e armários de fórmica, a mulher me olhou. Apertou os lábios com ternura. Sem me dizer nada, afastou uma cadeira da mesinha e me ofereceu bolo, suco de laranja. Passou de leve a mão em minha cabeça. Eu queria saber onde estava minha mãe, mas a pergunta, diante do modo calmo e amoroso com que a mulher me recebera, perdera a urgência.

– Elenir, chamou alguém lá fora, no quintal.

Ela sorriu para mim.

Elenir era magra e usava um longo vestido florido, que a apertava logo abaixo dos seios. Seus cabelos formavam um coque desleixado no alto da cabeça, o que parecia repuxar as extremidades de suas sobrancelhas para cima. As mãos finas tocavam a louça e as panelas em movimentos fluidos, contínuos. Descobri, de repente, que havia outro menino na cozinha. Estava sentado no chão, ao lado da pia. Era gordo, tinha um pequeno hematoma no joelho; acariciava ou provocava um gato, que o encarava com o rabo erguido. Elenir encheu uma bandeja de fatias de bolo, fez sinal para o menino e estendeu a mão para mim. Fomos para o quintal. Não estranhei que estivesse cheio de crianças e mulheres, mas não compreendi por que não faziam barulho. Um garoto chutou a bola para mim. Eu olhei para Elenir, para a roda de mulheres sentadas em banquinhos e cadeiras. Era visível que elas não se importariam se eu entrasse na brincadeira. Devolvi a bola. Logo fazia parte de um jogo de bobinho com mais três garotos, enquanto duas meninas lavavam bonecas no tanque junto à escada da cozinha. Elenir falou algo baixinho para as outras, que concordaram com a cabeça. Uma delas me olhou com uma breve palpitação de espanto nos olhos, sorriu sem jeito.

Eu corria atrás da bola como bobo ou fazia alguém de bobo, mas me divertia igualmente nas duas situações. Depois subimos no caquizeiro que sombreava um dos cantos do quintal. Os meninos me cederam o melhor lugar, no galho mais alto. Eram gentis, afáveis, muito diferentes dos garotos da minha escola, sempre envolvidos em disputas e tão violentos que chegavam a se espetar com a ponta-seca dos compassos.

Por um tempo único, que infelizmente não se repetiria vida afora, não me perguntei quem era a mãe de quem, se esse era irmão daquela ou quem era o dono da casa, do bolo, da bola. Éramos todos de todos e tudo nos pertencia, ou melhor, nada pertencia a ninguém. Alguns nomes surgiam no ar, Manoel, Clarinha, Lauro, mas, em vez de apenas nos diferenciar, soavam como caminhos para os outros. Eram nomes abertos à livre circulação do afeto.

Aquela grama verdejante, entre cercas de ripas agradavelmente escurecidas pelo tempo, percorrida ao fundo por um varal com roupas coloridas, era um território distante dos atormentados domínios que eu conhecia. Ali, talvez, as diferenças superficiais entre as pessoas houvessem sido superadas. E quase toda diferença era superficial, parecia dizer a harmonia reinante naquele quintal. Uma comunhão tribal nos unia. As pessoas se relacionavam com a serenidade de estarem protegidas pelo que emanava do nosso destino comum. Quando uma das meninas censurou a outra porque não era para molhar o cabelo da boneca, ou quando os garotos se desentenderam acerca das regras do jogo, os adultos apenas observaram, e as próprias crianças se envergonharam das discussões.

Mas algo estava faltando, algo que daria sentido a tudo…

Então um garoto, provavelmente sem querer, atingiu minhas costas com um objeto duro. Algum sentimento adverso, subjacente, veio à tona, eu fui para a escada da cozinha, muito magoado.

– Onde está minha mãe?, lamentei para os meus pés.

– Ela já vem, disse, com indisfarçável tristeza, uma velha que espalmou a mão em seu rosto.

Elenir veio até mim, ajoelhou-se à minha frente.

– Ela está resolvendo umas coisas e já vem.

Percebi que suas palavras suaves escondiam alguma preocupação, e a mágica se desfez. Os meninos agora eram selvagens, as meninas, umas chatas gritalhonas, e aquelas mulheres talvez fossem as tais ciganas que roubavam crianças. Tive medo, me senti impotente, indefeso. Corri para dentro da casa, sem saber ao certo o que faria. Cheguei à sala, dominada por um grande tapete azul com flores vermelhas. Na penumbra, minha mãe falava ao telefone. Chorava novamente, mas discutia qualquer coisa prática. Ao me ver ali, fez um gesto consternado para que eu me afastasse.

Julguei compreender por que viéramos até aquela casa: nós não tínhamos telefone. E minha mãe precisava muito de um telefone. Fui para o pequeno jardim da frente, onde me sentei ao lado de um anão de pedra. Pela rua tranquila de terra batida, o vento erguia borrifos de pó. Fingi não perceber que minha mãe, atrás do reflexo das nuvens na janela, me observava com aflição.

Como poderia saber? Naquela manhã, as pessoas, cientes do que eu ainda desconhecia, me tratavam como um órfão recente. Pois numa praia distante, flutuando para sempre entre o mar e as areias do porvir, meu pai havia morrido.

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima