Mais da metade de mim

Para Niña

mais da metade de

mim.

Está é a dedicatória na capa de um disco – TXAI –, lançado em 1990, por Milton Nascimento.

Tanto na capa como no encarte há a explicação do significado de: txai – palavra da língua dos índios Kaxinawa… adotada por índios, seringueiros e ribeirinhos, no Acre, como tratamento de respeito e carinho a todos os aliados dos povos da floresta. Companheiro: uma metade de mim.

A dedicatória foi, acredito, inspirada no significado da palavra TXAI. Não está assinada.

O disco – que este ano faz 31 anos de lançamento – tem profundo significado político e cultural: é a voz de povos da floresta e ao mesmo tempo um grito de socorro. Grito que, apesar de ecoar até hoje, moucos ouvidos insistem em não ouvir.

Pior, os agressores e a agressão – ao natural e a natureza – aumentou.

Niña em castelhano é uma – criança – menina. Aqui na dedicatória não sei se a ‘felizarda’ é uma criança ou uma mulher.

Se uma criança tem todo o sentido: na maioria das vezes a filha é mais da metade da mãe ou do pai.

Se uma mulher posso imaginar que na ocasião que recebeu o presente era muito amada e completava o ser com quem vivia ou se relacionava.

Se isto, como justificar a razão pela qual este LP foi parar num sebo?

Imaginando ser um casal que separou-se pode haver mais que uma razão:

1) Niña preferiu devolver o afeto, agora em forma de objeto [para quem carregava mais da metade dela] para seu ex-companheiro/a.

Com o objeto nas mãos e já sem o afeto e sem saber o que fazer com “mais da metade”, de Ninã preferiu vendê-lo.

2) Pode ser o inverso: o disco, já transformado em objeto, ficou com Niña. Neste caso o/a companheiro/a não levou a “mais da metade” dela que era “parte” dela.

Completa e na completude da alma desfez-se do objeto.

Prefiro não continuar – pode dar um resultado desagradável – com a busca da razão de o disco dedicado a Niña ir parar num sebo.

Assim que li e ouvi sobre o massacre na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, lembrei-me do disco TXAI. Mais precisamente lembrei-me da capa a palavra – TXAI – de quatro letras, em vermelho vivo e riscos amarelos sobre o vermelho. A palavra estampada sobre a foto do tronco de uma árvore, no caso uma seringueira.

Não está especificado, se a foto é em branco e preto, mas creio que se colorida, nada mudaria nos tons. No centro da capa uma foto do rio Juruá.

Na contracapa, o “outro lado” da mesma – seringueira – foto e na parte superior uma foto de Milton Nascimento.

Está capa – não sei a razão – me apareceu “desenhada” na mente assim que tomei conhecimento do massacre na favela do Jacarezinho. Não lembrava que sobre a capa há uma dedicatória.

Não há relação – além da minha imaginação – de época e nem de conteúdo entre a capa e as músicas com o massacre da Jacarezinho.

Porém, na minha imaginação a relação foi imediata e ao ler a dedicatória tive a impressão que foi feita para alguém que teve sua mais da metade, ou uma parte de si arrancada nesse massacre.

Eu que lá não vivo e ao vivo nada presenciei tive parte de mim arrancada. Quanto foi arrancado de muitas mães, esposas, namoradas e órfãos que agora são?

Na palavra TXAI – quando me veio a mente – vi o fogo ardendo, vi o sangue escorrendo e um triste por do sol nos seus riscos amarelos. Vi o rio refletindo o céu de sombra em suas águas.

Coloco o disco na “radiola” e a voz de Milton canta:

Txai

Onde achei coragem

De ser metade todo teu

Outra metade Eu

Porque a tarde cai

E dona Lua vai chegar

Com sua noite longa

Ser para sempre

Txai

A tarde caiu sobre a Jacarezinho como há séculos cai sobre a floresta. Assim como na floresta e com os povos que nela vive a noite – se teve lua, poucos/as viram – foi longa e será para sempre.

Txai, metade de mim e de tantas e tantas pessoas tem sido violentamente arrancadas e enterradas ao longo da história do Brasil e assim foi em Jacarezinho.


Para ir além

Melhor que o silêncio

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