Melhor que o silêncio

O que me aproximou dele foi uma vaia. Depois de reclamar do eco e do sistema de ar condicionado da casa de espetáculos, João Gilberto viu a plateia se voltar contra si, aos zurros. Devolveu mostrando-lhes a língua e cantarolando “vaia de bêbado não vale, vaia de bêbado não vale”. Vi pela televisão e na cobertura das revistas semanais, que atearam polêmica, colocando o episódio como um faits divers. Por dias, a imagem não me saía da cabeça: aquele senhor de terno escuro, com as mãos espalmadas na altura do rosto, contorcido em uma careta com a língua de fora. A atitude parecia se descolar do homem. Em um primeiro impulso – confesso e peço perdão pela heresia –, considerei-o patético: “Um velho ultrapassado, criando caso por minúcias”, pensei. Convém contextualizar. Naquele fim de setembro de 1999, eu tinha acabado de completar dezoito anos e estava preso ao rock. Até então, eu nunca tinha parado para ouvir João Gilberto com método e afinco. Já tinha, é claro, pescado uma ou outra música, mas a Bossa Nova me parecia um fenômeno do período neolítico e na condição de adolescente pretensamente rockeiro, cabia a mim refutar tudo o que não fossem guitarras e distorções.

Impelido pelos flashes da vaia, acorri à rádio comunitária em que um amigo trabalhava e que costumava me franquear acesso ao acervo da emissora – eram tempos analógicos, distantes da massificação da internet. Lá, entre os vinis e CDs, encontrei dois álbuns de João, que gravei em um cassete. Voltei para casa com a fita debaixo do braço, como se portasse algo proibido. Tranquei-me no meu quarto e, com certa cerimônia, apertei o play. Dos alto-falantes, verteram as canções de O Amor, o Sorriso e a Flor, segundo álbum de João Gilberto. Primeiro, veio o estranhamento. A voz suave, baixinha, as orquestrações leves, como se dessem ênfase ao que João cantava. Não precisava de grandes arroubos ou pirotecnias vocais. Bastavam-lhe a voz e o violão. Em menos de 21 minutos – tempo de duração do álbum –, a coisa se deu: eu estava definitivamente embevecido. “Puta que o pariu!”, exclamei. Eu queria ter odiado João Gilberto, mas fui dobrado por seu modo quase sussurrado de cantar e por seu violão que parecia conter a síntese do universo. Nos dias seguintes, peguei-me cantarolando versos não só de “Meditação”, “Se é tarde me perdoa” e “Corvado”, mas também “Desafinado”, “Chega de saudade” e “Eu sei que vou te amar”, que constavam de um álbum ao vivo, que eu também tinha gravado na fitinha.

Desde então, toda vez que ouço João Gilberto, é como se o estivesse fazendo pela primeira vez. É o mesmo enlevo. A sensação se tornou mais aguda anos adiante, quando entendi minimamente o que havia antes: boleros e sambas-canções com orquestrações pesadas, cantores histriônicos com vozeirões cheios de vibratos, que cantavam amores fracassados e dores-de-cotovelo excruciantes, como se o camarada estivesse a ponto de meter uma bala na própria cabeça. Com sua batida de violão e seu novo jeito de interpretar, João Gilberto sintetizou cinquenta anos de samba, inaugurou uma nova era e, cantando belezas, trouxe sol ao ambiente até então taciturno da música popular. Todas as vezes que João acomodou o violão sobre suas pernas cruzadas e tirou acordes que se casavam com a sua voz, o mundo se tornou mais bonito. Mais poético, mais harmônico, mais melódico. Some-se a isso a busca incessante de João pela perfeição exigente de seu ouvido absoluto, no afã de dar o melhor ao público.

Ao longo das quarentenas que a pandemia tem nos impingindo, dei de passar horas assistindo a registros raros de João Gilberto. Descobri canais, como o mantido pelo pesquisador e produtor musical Pedro Fontes, que vem se dedicando a garimpar áudios e vídeos do homem da batida da Bossa Nova – alguns dos quais estavam restritos aos donos das fitas. Foi um novo deslumbre. Ali, ouvi, por exemplo, a gravação do especial “Chega de Saudade”, em que João se apresentou ao lado de Caetano e de Gal, levado ao ar pela falecida TV Tupi, em 1971. Em outro áudio – até então inédito –, João interpreta no estilo voz e violão o samba-enredo “Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm”, em uma gravação de um show em Bézier, França, em 1989. Em outros fonogramas, é possível ouvir João com seu jeito tímido, doce como sua música, conversando com a plateia entre um número e outro. Impossível não sorrir.

Outra descoberta me veio pela “Enclave”, newsletter do jornal literário RelevO, escrita pelo perspicaz Mateus Ribeirete, sob edição final do incansável Daniel Zanella. Pois os caras desencavaram o Brazziliance, um repositório de música brasileira mantido pelo alemão Andreas Dünnewald. Sim, um alemão! O gringo organizou um catálogo incrível – principalmente de Bossa Nova e samba-canção –, em que compila todas as versões que garimpou de cada música, listando o álbum por álbum de onde retirou cada fonograma. Tudo disponível para ouvir na hora, por streaming. Estão ali, por exemplo, 35 versões de “Desafinado” – da interpretação original de João Gilberto, de 1959, à gravação de Lenita Bruno, de 1968, que canta em inglês. E que viagem passear por variações de uma mesma composição, pela leitura de diferentes intérpretes. Fica a sugestão.

Nessas idas e vindas, João me ajudou a criar um mundo à parte. Esgotado de testemunhar, dia a dia, o quão sem fim é o abismo em que nos atiraram, meti um João Gilberto na vitrola em plena tarde de um dia de semana. Dali a pouco, a culpa me bateu. “O país nessa situação e o camarada, aqui, ouvindo Bossa Nova…”, disse para mim mesmo, suspendendo a agulha do toca-discos. Matutei um tanto. Não sei se você reparou, mas de uns tempos para cá, nos tiraram até o direito à contemplação – como se a celebração da beleza soasse como uma ofensa diante do caos obscurantista. Por outro lado, talvez aferrar-se ao que viceja seja justamente uma forma de resistência. Para além disso, tenho para mim que essa gana em revisitar João Gilberto tenha um quê de intuitivo. João é o exemplo mais bem-acabado de uma época em que tínhamos um projeto de país, em que havia um país por construir, com ganas de ser moderno – não um Brasil por destruir, descambando para um passado de trevas, como agora. Voltei o LP à vitrola e, mais uma vez, era como se eu ouvisse João Gilberto pela primeira vez. Concordo com Caetano: “Melhor que o silêncio, só João”.


Para ir além

A crônica não mata – parte 3

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