Apontamentos – XVI

Queda

Creio que depois de ser classificado como pessoa idosa foi a primeira vez que caí em via pública.
Andava despreocupado, mas atento, afinal sempre há alguém querendo assaltar uma pessoa idosa. E, alerta, vi um homem andando em sentido contrário. Conheço-o?

Ao mesmo tempo em que buscava reconhecê-lo, observava sua camiseta com algo escrito. Ao tentar ler, tropecei e, quando dei por mim, estava no chão, e a dor se espalhando nos punhos, palmas das mãos, dedo da mão esquerda, na perna direita. Meus óculos de sol e a garrafinha de água foram parar longe.

Com vergonha, procurei rapidamente me levantar e então notei que estava sendo ajudado. Por quem, meu Deus? Justamente pelo homem que vinha em sentido contrário, e nesta situação lembrei quem era ele.
Nesse instante chegou uma mulher: meu Deus, quem será? Outra conhecida?

Com vergonha, não conseguia olhar diretamente para eles. Tive vontade de sair correndo, mas não o fiz, as dores não permitiram. Sai devagar, manquitolando e imaginando as pessoas comentando: o Dr. Rosinha caiu.
Será que todas as pessoas sentem vergonha quando caem?


O silêncio

Meu velho celular começou, sozinho, a desligar e ligar. Era querer usá-lo e pronto, desligava.
Dia seguinte, logo pela manhã, procuro a oficina para consertar.

-O técnico só vem à tarde.

Foi o que ouvi da moça que me atendeu no balcão. Como conheço e confio no técnico, deixei-o lá. Mas ao voltar no final do dia para buscá-lo, ouço:

-Ele teve muito serviço na outra loja e só vem amanhã cedo.

Pelo horário, outras oficinas estariam fechadas ou fechando, e, de qualquer maneira só no dia seguinte poderia levar para outro local para consertar. Deixei o celular com a promessa de buscá-lo ao meio-dia.
Dia seguinte, horário combinado, assim que piso na loja vem o aviso:

-Ele não veio hoje. A avó dele morreu.

Saio – claro que não calmo como parece na escrita – para levá-lo a uma segunda oficina, que tenho relativa confiança. Mesmo sendo informado que o técnico só chegava depois das três da tarde, deixo-o.
Já quase no final do expediente recebo um telefonema do técnico:

-Não vale a pena consertar, sai mais caro que um novo.

Colocando o aparelho no bolso, saio fazendo as contas de quanto teria que gastar na compra de um novo.
Em casa, ele volta a funcionar em perfeito estado. Creio que quis me proporcionar quase quatro dias de silêncio auditivo e visual, e me livrar das chamadas de robôs que vendem de tudo.


Crônicas com datas e hora (12/10/23)

São 10 horas e 42 minutos: chove.

Chove desde a madrugada. Momentos de pancadas fortes, alternando com outros de calmaria
Assisto da janela a rua vazia, nem carro passa. Vazio que me permite observar com mais atenção o outro lado da rua com uma casa decorada para a festa de halloween: o que temos a ver com este evento ou festa?

São bruxas penduradas que, molhadas pela chuva e com o vento, ensaiam voos curtos e turbulentos. Uma bruxa vestida de preto, sentada na varanda de frente para a rua, observa a rua e é da rua observada.
Há um homem decapitado, outro com o corpo enfaixado e caído na escada. No jardim, muitas abóboras (de plástico), no chão ou penduradas nos arbustos, formam “assustadoras” cabeças/caveiras.

A decoração não é fixa, dia após dia os personagens mudam de lugar, ou são retirados e substituídos por outros. Há também uma bandeira cor de abóbora, com o desenho de uma abóbora em destaque numa tonalidade mais forte, que veio substituir a bandeira do Brasil que tremulava desde 2018.
Dia 1 de novembro o cenário foi desmontado e a única coisa que permaneceu, por mais alguns dias, para minha alegria, foi a bandeira cor de abóbora com a abóbora tremulando.


Maldade

De manhã, durante o café, vejo pela janela o coqueiro todo descabelado. Suas folhas foram cortadas de ontem para hoje. Quando ventava, formava uma imagem de – assim imaginava – cabelos em movimento, como se fossem ondas levadas pelo vento.

O coqueiro era a minha biruta: me dava o sentido dos ventos.

Agora está lá um pau fino, longo, quase seco, com meia dúzia de folhas. Me deu tristeza. Entendi o ato como uma maldade, até porque folha de coqueiro não entope bueiro, não acumula lixo e sua beleza dava um ar tropical à paisagem.

A tristeza é tripla: não tenho mais minha biruta verde e alerta que embelezava tropicalmente a rua; junto com as folhas cortaram um cacho, todo florido, amarelinho, que alimentava abelhas; cortaram a possibilidade dos coquinhos, alimento de pássaros e principalmente dos periquitinhos que, com seus gritos/cantos e cores dão vida aqui ao bairro.

Foi cortada também a possibilidade de eu comer alguns coquinhos.

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