Almas doridas

Já me tiraram a comida e o sol,

já levei chute e bofetada.

Abriram as pernas da minha mulher,

arrancaram a roupa de minha mãe.

Não tem mais o que tirar de mim,

só ódio.

J. M. E., 31 anos, preso no Rio de Janeiro.

(http://www.dhnet.org.br/dados/caravanas/br/iicaravana.html).

Marcos Rolim, quando deputado federal e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados organizou uma atividade chamada “Caravanas da Cidadania” e convidou-me para participar. Por não ser membro da Comissão só pude estar em duas: a que visitou vários manicômios e outra, prisões penitenciárias e cadeias.

Nessas visitas vi como são tratados os restolhos do capitalismo e de uma sociedade desumana e insensível. Os considerados inúteis, degenerados e bandidos são abandonados em celas ou quartos insalubres, tanto para a saúde física como a mental.

Homens e mulheres, na sua grande maioria, transmitiam – através de seus olhares, gestos, falas, roupas e expressões corporais – angustia, tristeza, sofrimento… enfim almas doridas.

Entre os visitados, em 2000, está presente na minha memória o presídio Ari Franco, localizado no bairro Água Santa, na cidade do Rio de Janeiro, que no relatório Rolim chamou de “A porta do inferno”: o presídio encontrava-se superlotado, com uma média de 16 presos por cela. Não se sabe, exatamente, qual a capacidade do estabelecimento que abrigava no dia de nossa visita 1.030 internos.

A construção do presídio era improvisada: um edifício, que parece um armazém, com teto alto e dentro subdivido em alas e celas. Sobre as celas uma rede – como essas de seguranças que os moradores de apartamentos colocam em janelas e sacadas para crianças e animais não caírem – estendida, com o objetivo de impedir a entrada de pombos e todos os consequentes danos à saúde que causam, pois entre as redes e o telhado havia um enorme espaço que servia de abrigo a eles.

Ao sair da visita uma jornalista me perguntou: “o que o senhor viu?”

Vi muita coisa, principalmente tristeza, injustiça, desilusão e falta de esperança, mas como descrever tudo isto para virar notícia? Sequer tentei.

Fui direto a resposta à pergunta formulada: “vi uma grande quantidade de negros e glabros”.

Ao que ela retrucou: “como assim?”

Pela cara que ela fez imaginei que sequer sabia o que é glabro, então explicitei: “vi uma população carcerária majoritariamente jovem e negra, cuja maioria sequer tem barba”.

Esta e as demais visitas que fizemos me marcaram fundamente sempre que leio os números da violência, agressões e assassinatos ou vejo imagens de verdadeiros genocídio – em que a maioria das vítimas é negra – aqueles rostos e corpos me invadem num misto de desespero e insanidade.

Desespero: até quando isto vai?

Insanidade: são insanos os que cometem toda esta violência? Ou insano sou eu que não aceito a violência?

Onde o processo civilizacional errou? Ou não errou, é isto mesmo?

Chego, às vezes, a achar, quando vejo a violência sádica de autoridades e de gente da população, que é isso mesmo.

A lembrança daquelas visitas invade-me cotidianamente, pois a realidade hoje – com a barbárie naturalizada – é pior do que a da época das Caravanas. Se antes a tortura e a morte ficavam, na maioria das vezes, dentro de quatro paredes, hoje ela está nas ruas. São centenas, milhares de casos todos os anos e quase sempre terríveis como os dos últimos dias: o massacre da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro e o da tortura praticada por três policias rodoviários federais contra Genivaldo Alves de Jesus, em Sergipe. Toda essa violência é aplaudida pelos fascistas que ocupam cargos governamentais.

Genivaldo foi assassinado e, depois de morto, chamado de bandido, pelo criminoso que ocupa a presidência do Brasil. É muito ódio plantado todos os dias.

J. M. E. queria que lhe tirassem o ódio. Mas, no Brasil de hoje, a construção do ódio é política de governo e de parte – exageradamente grande – da sociedade.

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