Humor: o que é? Como vive? Do que se alimenta?

O humor é um patinho feio entre os chamados textos nobres. Mas pelo menos é alegre – na maioria das vezes, pelo menos.

Sigmund Freud, pai da psicanálise, foi quem contou essa história, em Psicopatologia da vida cotidiana:

O Presidente da Câmara dos Deputados do Parlamento austríaco abriu a sessão: ‘Senhores Deputados: constato a presença dos membros dessa casa em quórum suficiente e, portanto, declaro encerrada a sessão!’ Somente a hilaridade geral despertou-lhe a atenção e o fez corrigir o seu engano.

Não sou Sigmund Freud, mas tenho minha história: contava eu com uns 5 ou 6 anos e, muito tímido, recebi a notícia de que seríamos visitados por uma tia. Sofri, eu não estava muito interessado em interagir com tias distantes, daquelas que dão tapinhas em sua cabeça e dizem “como cresceu!” (ou seja “1”, ela era o que sou agora diante dos filhos de amigos; ou seja “2”, virei uma tia véia, e com acento agudo, pra manter a regra antiga e denunciar a idade). Mas eu, criança e já na época angustiado, quis acabar logo com os ritos iniciais, escapar e ir brincar no quintal. Quando ela chegou, sem querer e inadvertidamente, disparei: “tchau, tia”, em vez de dar oi.

Como já dizia o grande filósofo Chaves: “foi sem querer querendo”.

Agora que já não sou aquele menino, posso rir. Junto com você, que não viveu a situação vexatória, podemos rir da situação do eu-menino e do político austríaco de Freud. Engraçado, o humor pode se estabelecer ou não conforme a disposição dos sujeitos envolvidos. Os deputados do parlamento austríaco riram na hora, mas poderiam ter achado aquilo uma desonra. Minha tia pode ter rido, mas também pode ter se ofendido – eu só fiquei vermelho e sem coragem alguma de olhar para ela.

Então, o humor se dá em uma relação que vai do fato em si até os sujeitos envolvidos e até os expectadores que não tiveram nada a ver com a história. Mas que são capazes de entender a graça, pois, embora cada pessoa seja singular, há experiências humanas comuns que nos atravessam. Fazer algo contra a vontade e expressar isso “sem querer”, por exemplo, pode ser sentido por um político austríaco do final do século XIX e por uma criança brasileira do final (nem tão final assim) do século XX.

O que provoca o humor nesses e em tantos outros casos? Uma quebra de expectativa, a revelação de um pensamento secreto que vazou. Bastava ao político dizer “declaro aberta a sessão” e ao eu-menino dizer “oi, tia”, e esses fatos se tornariam inúteis, despidos de interesse humano, meramente convencionais.

Até um palhaço escorregando em uma casca de banana é a quebra de uma expectativa (o normal, a regra, a convenção é a pessoa caminhar, o escorregão é o corte inusitado). Embora isso tudo não seja exclusivo do humor.

Se rimos de vídeos com pegadinhas, que mostram tentativas desastradas de alguém fazer algo – novamente a quebra de uma normalidade –, também podemos dizer que nossa estrutura psíquica nos prega algumas peças, faz das suas pegadinhas. Quem, afinal, disse “declaro encerrada”? Quem, afinal, disse “tchau, tia”? Segundo Freud, foi o inconsciente, essa instância psíquica poderosa que não se revela assim, às claras, mas está o tempo todo mandando notícias por meio dos sonhos, dos atos-falhos, dos lapsos. E dos chistes, essas tiradas cômicas de que lançamos mão para fazer graça ora com o outro, ora do outro, ora para o outro. E ora com, de e para nós mesmos.

Se uma das formas a partir das quais nasce a graça está na quebra da expectativa, na quebra do óbvio esperado, na quebra do lugar-comum, isso pode significar uma saudável fuga dos clichês. O clichê – a frase-feita, o “normalzinho” – apresenta uma versão previsível que a diversão é capaz de quebrar, di-vergir, sub-verter (fazer verter versão nova escondida, portanto). Enfim, di-vertir (dis + vertere), ver um outro lado, tomar uma outra direção.

Não à toa, quando uma piada é repetida muitas vezes, perde o frescor, perde a graça. Ou pelo menos a força inicial.

Existem campos do conhecimento consagrados a explicar a realidade, o mundo, a vida, ou pelo menos a tentar assimilar seus enigmas. Como efeito disso, temos, por exemplo, o “ah” de admiração que a arte produz, e o “ahá” da ciência, com suas descobertas (eureca!). Podemos chamá-los de discursos nobres.

No entanto, é possível arriscar dizendo que existe um patinho feio – mas alegre – infiltrado no “ah” do embevecimento e no “ahá” da sagacidade: é o “ahaha” do humor, que, ousaria dizer, provoca embevecimento e faz-nos sentir sagazes – afinal, nada mais desabonador, e desesperador, do que não entender uma piada num círculo de amigos que riem.

De outro lado – da mesma moeda –, o discurso exageradamente austero e inflexível enrijece a existência, coloca-a em um molde por vezes desconfortável.

Repito em outros termos: quando verte, o humor subverte, diverte. Não se trata necessariamente da subversão político-revolucionária a que em geral a palavra vem associada, mas da que nos faz reconhecer versões escondidas, abafadas, obscurecidas da realidade. E, claro, do próprio sujeito, que seria mais leve se soubesse rir de si mesmo, para se permitir ver de um jeito renovado a frieza do real e a dureza das verdades rígidas que se imaginam absolutas e ubíquas. Ao quebrar expectativas, o humor abre um outro mundo dentro do mundo, propondo uma lente outra para vê-lo e lê-lo.

Eu ainda volto a falar de humor na próxima coluna, afinal deixei minha tia lá em cima e preciso me redimir.

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