Bobo em dobro

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Jan Miense Molenaer. Children teasing dwarves, 1646. Museum Boijmans Van Beuningen. óleo sobre tela.

Conheci a obra acima em 2014, quando passei uma das temporadas holandesas para escrever meu terceiro romance, Vertigem do chão. Chama-se Children teasing dwarves, ou Crianças provocando anões, um óleo sobre tela de 1646, do pintor holandês Jan Miense Molenaer. Quanto ao romance, ele se passa predominantemente em Curitiba e em Utrecht. A tela, no entanto, está em Roterdã, cidade que acabou aparecendo de forma marginal no enredo. A pintura é uma das tantas que são citadas no livro. O personagem brasileiro, Leonel, muda-se para a Holanda a fim de desenvolver melhor seu trabalho como bailarino contemporâneo. Acaba se hospedando na casa de uma marroquina de tradição islâmica, mas já bastante secularizada, professora da Universidade de Utrecht, a UU, fluente em espanhol por causa de sua fuga do Marrocos para a Espanha na juventude.

A certa altura, Leonel e Fadilah – a personagem marroquina – participam da seguinte cena (é Fadilah quem responde sempre em espanhol):

Children teasing dwarves era uma verdadeira cena de bullying em pleno século, sei lá, não sabia de quando era a obra, mas devia ter uns quatrocentos anos. Depois de terminada a água, Fadilah pediu café e um pedaço de torta, que comia devagar. Com a boca cheia, fez gesto para que Leonel prosseguisse. E ele, já mais solto, ria enquanto falava das crianças zoando um anãozinho que se defendia com uma pedra na mão, pronta para ser atirada em alguém – parecia até já ter acertado um, que fazia cara de dor – enquanto os adultos assistiam às cenas com deleite. Pero ¿por qué crees que esto es divertido? E disse que essa moral tão crua era para ser típica do século dezessete, não do vinte e um. Ao ver crianças e anões em conflito, os adultos riam. Fadilah propôs substituir o anão por um gay. Ou por um sujeito fodido que veio de longe fugindo da miséria. (…) Por Maria Madalena. (…) O mundo já se maltratava o suficiente. Seria à toa que pelo menos desde o século dezesseis a pedra arremessada era vista pelos esclarecidos como símbolo da estupidez humana? (…) Leonel tinha visto uma dessas telas no Boijmans, mas não era de Bosch, e sim de um tal de Van Hemessen, de quem nunca tinha ouvido falar. Mas a imagem estava clara: um médico de óculos tentava retirar uma pedra incrustrada na testa de um sujeito enquanto um outro rezava ao lado da vítima. ¿Víctima? ¿Por qué cree que él era una víctima? E Fadilah retomou a tese da violência como uma resposta eterna, como ação e reação que vinham do infinito e para ele caminhavam, citou o uroboro, que Leonel não entendeu, e seguiu falando das hostilidades mútuas. Se, no Brasil, havia maus tratos e gente matando gente. A pergunta não esperava resposta. Uma estocada para perfurar os rins. Que não a levasse a mal, Fadilah pediu, quem não era perverso em alguma medida? (…) Fadilah pagou a conta. Quiero mostrarte algo. Mas, antes, queria saber quem era violento na história. Era fácil culpar o anão, afinal era ele quem revidava com agressões físicas, era ele quem estava com a pedra na mão, e já tinha atirado uma. Os outros não tinham feito a ele nenhum mal visível. Leonel não se comoveu com a alegoria política de Fadilah, fechou-se na vergonha por ter visto graça no anão, por ter caído na armadilha tosca, a de que anões são sempre engraçados, sempre um número circense a garantir diversão. (…) No importa quién lanza las piedras primero. Lo que importa es que se tiran piedras todo el tiempo.

(…)

De nada adiantava ser tolerante em um mundo de intolerâncias. Uma suposta corrente do bem que oferecesse sempre a outra face para servir de exemplo da bondade não propagaria o bem. Antes, seria esmagada. Que país se desarmaria para dar bom exemplo, sem garantia de que outros também se desarmassem? A outra alternativa era o embate. Entonces el enano le golpearía la cabeza a un niño y los otros, tal vez los adultos, lincharían al enano porque necesitarían defenderse. Y nosotros estamos luchando hasta hoy contra alguna agresión original de un tiempo perdido en el pasado.

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Estou lendo um livro cujo título parece autoajuda barata: O que você é e o que você quer ser. Mas não é autoajuda (e nem foi barato). É de um psicanalista considerado dos maiores dentre os britânicos, Adam Phillips, e – foi isso que me fez comprar o livro – “um dos autores que mais me estimulam a pensar”, nas palavras de Contardo Calligaris. Phillips, no capítulo dedicado à frustração, usa o Rei Lear, de Shakespeare, e uma citação de Stanley Canvel, que diz:

A causa da tragédia é que preferimos assassinar o mundo inteiro a permitir que ele nos exponha ao constrangimento de mudar.

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Entreguei há cerca de dez dias a tradução de Porti ciascuno la sua colpa, da jornalista italiana Francesca Mannocchi. Traduzi o título como Cada um carregue sua culpa. Um livro desconcertante sobre a guerra do Ocidente e do Iraque contra o Estado Islâmico (e que já rendeu esse ensaio aqui) na cidade de Mossul – que rima com Cabul, o que é uma rima, não uma solução. O livro de Mannocchi é um desfile de crueldades. A autora, repórter que acompanhou in loco o conflito, até faz umas pausas para refletir, mas a lista imparável, em avalanche, dos atos cruéis feitos em nome de uma ideia muito solidificada de religião e poder é a grande responsável por fazer o leitor se obrigar a fazer as próprias pausas e pensar até onde podem ir as marcas da passagem humana sobre a vida e sobre a morte. O Ocidente não é santo, ela chama a atenção para isso, mas foca mesmo é nos golpes e contragolpes, nas ações e reações que geram re-reações que geram re-re-reações, irrefreáveis, até se perguntar sobre a confusão que se estabelece entre justiça e vingança. Famílias vítimas do Estado Islâmico querem infligir a morte às famílias que foram cúmplices do Estado Islâmico, que por sua vez acham-se vítimas injustiçadas e o ciclo não para nunca. Essa ideia de que “eu só quero justiça” (que é algo nobre) esconde a frase “eu quero vingança”, no velho estilo “olho por olho e dente por dente”, e é muito difícil de ser quebrada. Deixo esse trecho do livro aqui:

Crianças vítimas. Crianças que viram os pais mortos diante dos próprios olhos e com a ruga inconfundível no rosto, da mesma dor que encontrei tantas vezes, dizem que não, não dormem e não encontram paz e não conseguem parar de pensar naquilo que viram e que sim, somente se matarem os membros do EI com as suas mãos estarão finalmente saciados, porque não há perdão e a única justiça é a morte. E assim seja.

Não há ninguém para lhes dizer: “Parem, afastem-se dessas casas, vocês sofreram, mas não confundam vingança com justiça, não somem dor a mais dor. Que culpa têm esses filhos, crianças como vocês?”.

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Li já faz algum tempo e achei ousada a iniciativa do autor, o italiano Daniele Giglioli, ao escrever A crítica da vítima. Prato transbordando para críticas, acusações, cancelamentos. Anos depois eu o vejo citado no livro que mencionei acima, de Francesca Mannochi:

Ser vítima dá prestígio, exige atenção, promete e promove reconhecimento, ativa um potente gerador de identidade, direito, autoestima. Imuniza contra qualquer crítica, garante inocência para além de qualquer dúvida razoável. Como poderia a vítima ser culpada, ou melhor, responsável por alguma coisa? Não fez, foi feito a ela. Não age, padece. Na vítima, articulam-se ausência e reivindicação, fragilidade e pretensão, desejo de ter e desejo de ser. Não somos o que fazemos, mas o que sofremos, o que podemos perder, aquilo de que nos privaram.   

Crer-se vítima autoriza o sujeito a buscar vingança, desde que vingança seja chamada de justiça – só vou lembrar, sem discutir, que justiçar, no dicionário, significa executar, supliciar.

Uma costura precária

“Ora, mas isso é fácil de resolver, afinal, quem está errado é que deve parar e enfim quebrar o ciclo. Eu sei que preciso me abrir ao diferente, acolher o modo de pensar do outro, mas o que eu posso fazer se eles estão flagrantemente errados? Se eles são maus? É só fazê-los enxergar a verdade”.

O argumento acima, que me corrói a alma, com o qual concordo tantas vezes com a mais cristalina das certezas, é o mesmo argumento de que se valem os inimigos que estamos com vontade de esganar?

O real está aí, esfregando-se nu em nosso corpo, mas a descrição dele, a tentativa de prender esse real dentro de uma linguagem, só pode sair distorcida pela verdade de quem o descreve. Nós falamos em dialeto uma língua que não existe, essa língua descodificada (sem código de linguagem, o que é diferente de decodificada) é o real. Toda tentativa de dizê-lo sai com o dialeto de quem fala. Verdades fundadas em valores e desvalores, crenças e descrenças. A mais absoluta das verdades, aquela escrita em V maiúsculo pelo crente em Deus, é um conceito risível para o ateu que, ao seguir uma ciência baseada em evidências, assume seu existencial-materialismo que não só ignora a verdade do crente como ainda a trata como a mais ilógica das mentiras. Nos extremos: para o crente, é claro que Deus existe, só os estúpidos não conseguem sacar isso, sentir a Sua presença. Para o ateu, é a coisa mais idiota que alguém já pôde criar, sinal de fragilidade e falta de coragem para tomar as rédeas de uma vida inerentemente plena de angústias e conflitos.

Até temos tentado criar umas leis que sejam expressão da justiça mais que da vingança. Leis que se desvinculam da verdade do sujeito (nossa, isso é mesmo possível?). É justo lutarmos por justiça. É certo lutarmos por vingança? Onde isso vai parar? Resposta fácil: desse jeito, não vai parar, os freios não existem e o resultado certo – não porque adivinhamos o futuro, mas porque já conhecemos o passado – é a perpetuação de um jogo de forças alimentado pelo ódio incondicional feito de um processo de desenxergar o outro.

– Bobo.

– Bobo é você.

– Não, é você.

– Você é bobo em dobro.

– Você, em triplo.

– Você, infinito.

Em uníssono:

– Manhê, ele me chamou de bobo.

E não há mãe alguma para vir nos socorrer.

***

Já trago alguns questionamentos à tentativa de costura acima. Se eu conseguir colocá-los em pensamento articulado e esboçar possibilidades de resposta, esse assunto continua na próxima coluna. Se eu mudar de assunto, disfarça, finge que esqueci.

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