Lia – Capítulo 94

1

Saíram cedo, levaram o cão.

A casa, emprestada, ficava longe da areia. Eram ruas de pedra, vielas, não pouco mato. Lia, pequena, sandalinha, sentindo os talos roçarem as canelas redondas. Solas finas registrando os cacos no chão. Depois de uma caminhada, o cachorro já sumiu por sobre a elevação que separava o mundo que a menina conhecia daquela outra coisa. Daquela enormidade ruidosa e brilhante, daquele movimento infinito, daquele horizonte inteiro novo. Dali, sentia só o cheiro, ouvia o marulho, intuía umidade. Seu coração dava pulos e ela prendia bem firme a mão da mãe antes do estrondo.

2

O mar, no ano seguinte, já não era tão estranho. Ela conhecia o receio de andar sobre um chão que não via. Sabia a sensação de ter a pele crispada pelo sal que ali ficava. A água sempre fresca sob o céu sempre cinzento era sua conhecida. Imaginava. Mas pela primeira vez, dessa vez, estava entrando sozinha na beira da água. Mãe e pai sentados lá na areia. O cão correndo longe. A água de 1959 foi a mais fria de toda a sua vida. Olhando por cima do ombro, pôs as mãos no mar e, como tinha aprendido, molhou o pescoço e as têmporas. Recebeu dois sorrisos de volta.

3

Conheceu a Judite ali mesmo. Fazia tanto tempo que não iam para a praia. Os pais de Judite desciam todo ano, e por isso a menina tinha uma familiaridade muito maior com a areia, a água, o mundo. Ensinou Lia a pegar jacaré nas ondas maiores. Ensinou a dar pulinhos num pé só para tirar a água da orelha. Ensinou sem nem falar disso que os braços e pernas ralados da areia grossa valiam a pena. Ensinou que mergulhar era ir mais fundo.

4

Estava olhando aquele menino de longe havia dias. Ele sabia nadar. Entrava fundo e ia sozinho. A água fazia o cabelo preto cerrado parecer uma esponja brilhante. Lia não sabia o que fazer. Não tinha com quem brincar. O cachorro nem dava por ela. Os pais tinham ido para casa aos primeiros sinais da chuva fina que agora já caía. Lia estava subitamente velha demais para brincar. Não sabia o que fazer na água. Não queria ficar à toa no raso sentada igual nenezinho com os fundilhos do maiô enchendo de areia suja. Só foi entrando na água e pulando com as ondas, lançando vez por outra uns olhares na direção da pele escura do menino. (A onda grande chegou bem quando ela voltava os olhos para o mar, bateu-lhe em cheio no peito e na cara, jogou seu corpo para trás num torvelinho cego e confuso. Lia estendia os braços e não sabia se eles bateriam no chão ou não. Rodava sobre si mesma com uma expressão confusa, enfurecida e apavorada que ninguém podia ver. Um pé apareceu sobre a água, rápido. Mas ninguém estava olhando.)

5

A depender da profundidade da água, ela sabia muito bem ficar parada num mesmo ponto deixando que o ir e vir das marolas fizesse o serviço todo. Fingia que prendia de novo o cabelo, enxugava os olhos com as costas da mão. Olhava o horizonte. E a água subia e descia, ia e vinha. E subia e descia por ela também um calafrio que a essa altura conhecia muito bem. O mar já tinha sido domesticado. O que restava por entender era muito diferente. E o cão tinha ido embora.

9

Era o mesmíssimo ponto da praia. Mas as ruas agora tinham asfalto. E a casa da amiga ficava bem de frente para o mar. Era só atravessar, já descalça, dar uma corridinha pela areia para se esquentar, e cair na água. E ela ia cedo, sem mais ninguém. Todo dia. Só a mãe da amiga, um pouco pela responsabilidade de estar hospedando Lia, um pouco por receio puro e simples, e não pouco por admiração, ficava discretamente atrás da cortina, por uma fresta, observando atenta enquanto o ponto colorido do maiô da menina ia se afastando, passando as ondas, rumando ao mar aberto. Longe e mais longe.

10

Passou a mão da testa para trás. Os cabelos já mais ralos. Tirou os óculos de natação que agora eram necessários. Olhos mais delicados. Água mais suja no mar? Parou um segundo olhando o prédio que ocupava há anos o lugar da casa da família da Inês. Lambeu o sal em volta da boca. Fungou. Respirou muito, muito fundo sentindo a brisa que à noite voltava para o mar, gelando seu corpo no caminho. Mexeu os pés ainda cobertos de espuma branca e voltou para o mundo sem nem olhar para trás.

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