Lia – Capítulo 88

Um homem é coluna de pedra. Pilar, pilastra, pedra. A mulher é árvore. Coisa viva, cuidadora.

*

Ela tinha seus dezessete anos de idade e estava em casa, sentada ao lado da janela, aninhada como um gato na cadeira de palhinha, banhada de um raio de sol, lendo um livro, alguma coisa. Blusa branca de alças finas.

A pedra entalhada da viga sustenta edifícios. Colunas mantêm frontões elevados por séculos. Homens são firmes. Mas a mudança da pedra é fratura. Decomposição. A coluna nunca será tão bonita quanto no dia de sua ereção. Nunca, também, terá a força que teve nos primeiros anos de estada. Estática.

A coluna não se move, nem se deve mover. Não mais que o necessário para acompanhar as vibrações da terra, caso trema a terra um dia. Não mais que bastante de aceitar as acomodações da matéria que soergue. A coluna mantém.

E pouco depois de pensada, uns anos depois de erigida, começa a se fragilizar, estilhaça por dentro, invisível, e assina o destino: determina-se a sina da pedra. A coluna vai cair. Ceder. Vai ao chão. Sem mais.

E com ela o prédio todo.

A coluna não muda, não cresce, não se altera ou evolui.

*

Havia um gato também. Uma gata, de fato. Mas estava no piso, largada nas lajotas como esteira, tapete, almofada. O mesmo sol.

*

Um homem de cinquenta é o menino de nove anos que nunca deixou de ser. Que rachou. Perdeu seu tanto de certezas, ganhou inquietudes, frestas, rachaduras. Versão piorada de uma visão imatura. Coluna estável, rija, prestes. Pronta a ver-se em pó.

*

Não se vê daqui o que ela estava lendo. Vira agora uma página a mais, sem mover os olhos do livro.

*

A mulher é tronco, o que envolve a coluna. Fléxil, grácil, móvel e madura. Em cada estágio coisa pronta, planta plena, ser que cresce. Funcional.

Acima de tudo uma árvore é superior por coisa viva, por pulsante, por complexa e organismo. Composta. De partes que nem sempre se fazem um todo ao mesmo tempo, de raízes invisíveis que dependem de ramificações que não concebem. Um sistema de alimento. De cima abaixo, dos pés à cabeça.

Ferida, ela se cura. Reage, se dobra, se verga em sendo o caso. Escolhe.

Sustenta no chão os brotos que gerou, espalha-se, amplia-se, tolda e protege. Faz parte de um bosque. Mata. Morre o dia todo o tempo inteiro em suas partes, faz-se nova. Depende e por isso se levanta com mais força. Trabalha.

Trabalha, trabalha, trabalha por todos.

Dá flores.

*

Ela vira outra página. Atrás.

*

A mulher aos cinquenta é gigante. Carrega cicatrizes, mas viçosa. Viceja. É a menina de nove anos que nunca deixou de crescer. Que se achou. Contém multidões e abarca aquela menina. Ganhou aberturas para a luz, criou um sistema a sua volta. Fundamental, fundamentou-se.

Fez-se mundo.

*

Foi uma estranha sensação, mais ou menos equivalente a essas interrogações, também elas estranhas, sobre homens e mulheres, pilastras e troncos, cariátides, o que percorreu rumo ao pescoço a coluna de Lia. Um arrepio físico da pele do tronco. Arrepio também de ideias não formadas, nebulosas, sementes de ideias.

Foi ver-se como planta, como ser superior.

Foi saber-se mortal, e ser superior.

Mas sem saber naquele momento ainda dar forma a tudo isso (mas, quando soube, ela o fez tão melhor do que eu, aqui, agora…), sem saber vestir de verbo a sensação.

E tudo porque do meio do nada, naquele silêncio, ao sol de um fim de tarde de outono, um cabelo se soltou de sua cabeça e, a meio de uma página relida ela sentiu sua queda pelo ombro e braço abaixo.

Inopinadamente.

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