Ninguém nos salvará de nós

Afunda na poltrona vermelha. Ergue um joelho, encosta nele os lábios. Com uma das mãos puxa contra si a coxa; a outra vai massageando, um por um, os dedinhos do pé suspenso. E fica olhando para o nada, numa divagação fetal. 

Uma haste dos meus óculos quebrou, resta só a pontinha. Teria que ir a uma ótica, mas continuam fechadas, como quase todo comércio. Por isso estou fazendo essa prótese com um tubo de caneta Stabilo. Com o isqueiro vou amolecer e achatar o tubo na parte que se apoiará na orelha.

– Foram mais vinte e oito mortes aqui, havia dito Rute ainda há pouco, antes de enroscar-se em seu próprio corpo.

– Onde?, respondo agora, passando super cola no que sobrou da haste .

– Não me estás a ouvir… Aqui, em Portugal, vinte e oito mortes. É pouco comparativamente. Supõe-se que estamos a descer o planalto, se calhar em breve sairemos desta situação. Viste os Estados Unidos?

No começo as notícias me interessavam, causavam espanto e um certo frisson. Agora o número de mortos e infectados me lembra o abutre que come eternamente o fígado de Prometeu. Um castigo determinado por poderes invisíveis, um flagelo diário que me atinge preso aos dias neste apartamento.

Quando se alongam, até as tragédias se tornam monótonas, penso, enfiando a pontinha da haste no buraco da Stabilo. Além disso, minha namorada tem razão: já não lhe dou a mesma atenção; estamos há um mês e meio confinados aqui, como tripulantes de uma estação orbital. Nossos movimentos, silenciosos, medidos, buscam não aumentar a ansiedade abúlica do outro. Cercados pelo vácuo que se fez, não podemos ir para fora. E ninguém virá para nos salvar de nós.

Ela abandona o transe, abaixa a perna. Só então me lembro de comentar (com a vagueza necessária) o que mal sei que ela disse há pouco:

– Enquanto isso, lá no Brasil… o genocídio mal começou.

Sem dizer nada – um pouco pelos brasileiros, um pouco pelo meu desinteresse – ela suspira. Sai arrastando os chinelos, se enfia no quarto. Penso em ir atrás, mas não saberia consolá-la de mim.

Ponho a geringonça para secar sobre uma toalha de papel. Examino-a: eu devia ter achatado o tubo antes, agora o calor da chama pode soltar a cola.

A brisa entra pela janela, num convite suave e perigoso.

Considero a possibilidade de colocar minha máscara e caminhar pelo Barreiro. Ir, talvez, até a prainha do Tejo, a dos velhos moinhos brancos, andar na curva frouxa da orla. Voltar a sentir o frêmito de fumar diante do rio, o rosto se consumindo ao vento como a brasa do cigarro. Mas, além do perigo físico, experimento o poder metafórico do vírus: quanto mais fico preso aqui, mais remota me parece a vida lá fora. Como se, para além daquela porta, projetassem um filme antigo que traz emoções já abandonadas pelo imaginário coletivo. Algo nas ruas (ou a falta ubíqua de algo) recorda o cenário pós-apocalíptico da grande cena de Planeta dos Macacos: o capitão George Taylor diante da Estátua da Liberdade, subsumida na areia – um Charlton Heston de joelhos, consternado, envergonhado pelo fim brutal que nossa civilização megalomaníaca encontrou.

Mas os homens daquele tempo temiam ver o mundo explodir sob a pressão da ganância. Nós, os de hoje (mesmo que secretamente), talvez o desejemos.

Leonardo me liga pelo vídeo do WhatsApp. Fala da situação da pandemia em Florianópolis, pergunta como estou e vai ao ponto: durante o confinamento, a namorada terminou com ele.

– Por telefone, pai!

As justificativas não o convenceram, está inconsolável. Dou-lhe alguns conselhos positivos, inúteis, pensando que ele tem vinte e dois anos, a vida pela frente e essa menina sumirá em meio ao pó do tropel das ilusões.

Ele ouve o que digo, vejo em seus olhos um respeito protetor.

– Claro, você tem razão. Claro…

Seu ar contido me lembra que os jovens não confiam nos mais velhos; pego atalhos, me calo. Ele me diz pra eu me cuidar etc. Desliga. No WhatsApp pipocam as palavras “Foi bom falar contigo” e um coração kitsch. Mando outro e sinto algo grande e imperfeito tornar-se belo e frágil como a Terra vista da lua.

… que motivos teriam os jovens para confiar nos mais velhos? Esta beleza de mundo que legamos a eles? Penso nas possibilidades que tem o Leo de viver num mundo solidário, sustentável, capaz de compreender e encurtar diferenças, injustiças. Nas possibilidades que tem ele de ser o homem que não fui.

Coloco o celular sobre a mesa como a peça difícil de um puzzle.

Em que curva imperceptível da história nos tornamos os carrascos de nossos próprios filhos?

Rute está dormindo a sono solto. A cola secou. Experimento os óculos com a prótese. A Stabilo, reta e grossa, fica empurrando a ponta da minha orelha, escorrega, cai. Pego o isqueiro para achatá-la. Com a chama acesa no ar, hesito.

Mas o que tanto ainda quero ver?

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