só existimos dentro

não é intenção abordar questões racionalistas neste texto. os processos de logicidade nunca me foram caros. não teço-me claramente quando ando desesperado. assisto todos os dias o caminhar em bicicleta de uma menina. ela entre grades, como que presa a um quinhão invisível, a rodear-se centenas de vezes. começo a encher a xícara de café e quando esvazio-a, perscruto pela janela. ela leve, mas densa. pueril e desmesurada, a balançar os cabelos, com o corpo pendido sobre um metal em rodas – contínua. completa circunferências infindáveis. já no quintal, a acender um cigarro, e sentado numa cadeira de plástico branco, penso que quando passamos por experiências e sensações extenuantes, emular sentimentos torna-se uma inevitabilidade corriqueira; inexoravelmente suprimimos nossos afetos, balbucio. a menina, a ajeitar os pés nos pedais, canta; talvez por ser a única coisa que possa fazer sem uma reprimenda; sem limpar-se de tudo. provo-me ao longo dos dias incapaz de analisar os lírios; as samambaias em pequenos vasos a crescerem, desmedidas; o desprender da grama pelas patas dos cachorros; as violetas a queimarem ao sol. tento catar os fios de luz – tocá-los talvez devesse ser um ato de engendramento do impossível em mim – mas volto-me ao possível e apenas contemplo-os distanciadamente, remotamente – palavra esta que inicia-se, doravante, no vocabulário dos recém-nascidos. rente aos pés, as formigas se organizam – levam em fila pedacinhos verdes; é perceptível o compasso das formigas em dias prementes como os de ultimamente. ainda mais quando tem-se um quintal em parte com azulejos alvos, a reluzirem. a menina, ainda a adiar a descida, comprime os ombros espasmodicamente; treme a tentar um malabarismo sem uma das mãos. descalça, e com as calças do pijama amarelo-mostarda arriadas, cai coruscada. seu metal em rodas estatela-se no chão e emite um eco meio silente. então examina os tornozelos – a correia deixou marcas de graxa na pele –, esforça-se despretensiosamente em limpar os pontos negros. o pai aparece no limiar da porta. insiste em dizer que suas voltas em círculo o deixam entontecido; atordoado. inquere sobre ir pra dentro de casa; se não lhe é mais conveniente entrar. ela levanta devagar, como se não quisesse – como se a queda fosse propositada e ansiasse pela textura e temperatura das pedrinhas que espraiam-se pela calçada – e não responde. alço-me da cadeira e direciono-me ao quarto. no caminho, noto-me desleixado – a barba por fazer, o cabelo sem corte, as unhas compridas a acumular sujeira. pego-me paradoxalmente e exatamente com o pouco de tempo que resta no trapo do mundo, como grafei num escrito anterior há muito. cato um livro do herberto helder:

            Num tempo em seda, uma mulher imersa
                        cantava o paraíso. Era depois da morte.
                        Num tempo: salsa, avencas
                        dormindo. A infância tinha febre. Então a voz
                            pronunciava lenços, pombas
                            impressas. Arrefeciam pêras no silêncio
                            posterior
                            àquele enigma.
[…]

no quintal, a ler com os olhos semicerrados, o sol contraposto à face, lembro num átimo do café que frequentava quase que diariamente na praça generoso marques. desvio-me ao livro novamente; as palavras somente correm e escapam – esfumaçam-se. semana passada li dois livros de clarice assim, a me escoarem. sem a exigência conspícua que ela manifesta. criamos países dentro de nós para aniquilarmos as cidades dos outros incluídas em nós, conjecturo. a menina, já de novo em bicicleta, para ante um pássaro montado no gradeado do portão e observa-o. e logo volta a passear pelo pátio; e parece mais vivaz; e parece que logo poderá sair do panóptico instituído. mas os pedais vão perdendo velocidade e as pernas já não respondem mais. e os canais de enfrentamento já fizeram-se demasiado presentes – agora a mãe aparece à janela e cria argumentos. a infância tinha febre e não cabe mais no fora. ela reluta em enfiar-se num ar já moído; entrar ao quarto em discurso já aquiescido – pois é só ali, no dentro, que se existe. crivo-me em analogias e penso que diários de quarentena passaram a ser ordinários – como a crise sistêmica do terreno convulsionado que nos circunscreve. e é na ordinariedade que a audácia dos dias nos diz que estamos diagnosticados por algo que ainda nos é inevidente. o lavar das frutas nunca foi tão notável; enxugar as mãos é um acontecimento consciente; o beijo é um terremoto longínquo e não supomos quando será permanente de novo. e a menina adentra.

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