Lia – Capítulo 69

Três meses. Pouco mais, pouco menos. Pouco antes, pouco depois.
Lia sentada numa grande cadeira de vime que parecia nada afeita a ela, em nada feita para as dimensões do seu corpo. Um mundo feito concebido para outras fases da vida.

E não deve ser fácil sentar elegante numa grande cadeira de vime quando se usa fraldas. A mera ideia de você estar sentada sobre sua própria imundície! Ainda mais sendo mulher. Mantenha a pose numa situação como essa!

Mas Lia fazia o possível. Como que determinada a agradar a pessoa à sua frente. Essa sim habitante de um mundo na medida do possível feito inteiro para a sua medida do possível. Sorria. Com olhos que não compreendiam de fato o que viam, olhos sempre fascinados com as novidades incessantes de um mundo que nascia mais novo e portanto mais estrangeiro a cada dia.

Lia sorria e mexia as mãos de maneira descontrolada. Era quase como se suas mãos se movessem sozinhas, contra sua vontade, subindo e descendo, oscilando, trombando com o mundo, a cadeira e, muito especialmente, com a colher que tentava encontrar sua boca.

Lia sorria e ao sorrir deixava escorrer um pouco de saliva, límpida, lisa, brilhante. Lia tinha o queixo molhado a essa altura, e coberto de sobras da mesma comida liquidificada que já decorava também o paninho com que haviam lhe tapado o peito. Por enquanto a cadeira se mantinha razoavelmente limpa.

Tinha o pouco cabelo solto. Curto demais para prender. Ralo demais para lhe cobrir de fato o couro cabeludo. Fino demais para ser o de uma pessoa inteira.

Da mesma boca onde vez por outra um pouco de comida conseguia entrar saíam sons parciais. Aparentes tentativas de encontrar palavras, ou ao menos sílabas, do português. Coisas inarticuladas, montadas quase ao acaso a partir do elenco das letras que neste momento ela nem guardava na cabeça. Mas isso era quase certamente falacioso. Leitura de quem lia. De leitores. Era mais possível que nem intenção houvesse nos balbucios daquela figura miúda empilhada na cadeira, recostada no vime e sem forças para sentar ereta. Ela quase certamente estava apenas mexendo a língua, o queixo e os lábios exatamente como mexia as mãos. Ou era movida por elas.

Difícil saber.

Lia naquele momento era profundamente inacessível. Um ser humano completo que no entanto não podia ser de fato compreendido pela pessoa à sua frente. Único outro ser humano completo, no entanto, que podia de fato dizer que a compreendia. Dos balbucios aos gestos descontrolados e vagas intenções manifestadas só com olhos.

Lia fechou as pálpebras longamente, enquanto a colher se detinha à sua frente, esperando uma nova chance de tentar entrar-lhe boca adentro. O que se passava dentro daquela cabecinha?

Será que não queria mais?

Será que estava cansada?

Será que estava farta?

Queria dormir, talvez sonhar…

Isso foi três meses, pouco mais, pouco menos depois de Lia nascer. Ou antes de Lia morrer.

Difícil saber. Difícil.

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